quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O rosto humano de Jesus



Nem todas as pessoas têm a mesma imagem de Jesus. Cada um de nós vai elaborando uma imagem da sua pessoa e da sua mensagem, de acordo com a nossa própria psicologia, o ambiente social em que estamos inseridos e as nossas convicções.
Contudo, a imagem que temos acerca de Jesus tem uma relevância fundamental, na medida em que influencia o nosso modo de entender e viver a dimensão espiritual do nosso ser.
Daí a importância de conhecermos o rosto humano de Jesus, porventura a personagem mais importante da História da Humanidade.
Jesus está na base da maior religião do mundo. Cerca de um terço dos seres humanos espalhados pelo mundo reclamam-se hoje da fé nele e dizem-se cristãos. Existem pessoas de outras religiões e inclusive pessoas sem confissão religiosa que admiram a sua vida e mensagem, embora não se reconheçam no cristianismo. A sua figura foi de tal modo determinante que a História se dividiu em antes e depois de Cristo. Ninguém tem dúvidas de que sem ele a História seria diferente.
Estamos no Advento, o período de quatro semanas que antecede o Natal, a data na qual se assinala simbolicamente o nascimento de Jesus.
O objetivo deste trabalho é analisar, de forma sucinta, o rosto humano de Jesus, destacando alguns traços importantes. Não se trata duma descrição exaustiva, mas de algo que nos pode incentivar a seguir os seus passos, abrindo novos horizontes na construção de um mundo baseado num novo paradigma das relações do seres humanos entre si, com a natureza e com a Fonte originária de onde emana todo a existência.
Atualmente, temos de Jesus mais e melhor informação do que sobre a maioria das personagens do seu tempo.
Dispomos de tudo o que as testemunhas da sua vida e da sua época nos transmitiram. Para além dos escritos canónicos do Novo Testamento, dispomos dos escritos apócrifos, bem como de fontes documentais judaicas e pagãs que se referem a Jesus.
Consequentemente, a tese de que Jesus não existiu e foram os crentes que produziram um conjunto de mitos sobre a sua existência não tem fundamento nem credibilidade.

JUDEU DE ISRAEL
Jesus, ou melhor, Yeshua (o seu nome hebraico), nasceu entre os anos 6 e 4 antes da nossa era, em Israel, durante o reinado de Herodes, o Grande, rei da Judeia e vassalo de Roma, sendo imperador Otávio César Augusto.
Morreu provavelmente em 7 de abril do ano 30, executado por ordem do prefeito Pôncio Pilatos, que governava a Judeia em nome do imperador César Tibério.
Os seus pais terrenos eram Maria e José, ambos descendentes do rei David, o monarca que tinha unificado e engrandecido Israel, o que contribuiu para reforçar a aura messiânica em torno de Jesus.
Tudo indica Jesus sabia ler e escrever e tinha conhecimentos particularmente sólidos sobre as escrituras hebraicas.
Desenvolveu a sua fé em Deus no âmbito da sua família e nas reuniões religiosas de sábado. Não parece ter frequentado nenhuma escola de escribas. Na transmissão da sua mensagem, exprimiu a sua experiência pessoal de Deus, recorrendo a parábolas, símbolos e comparações extraídas da natureza e da vida quotidiana do mundo rural.
Na conversação corrente e na pregação nos espaços fora das sinagogas, Jesus falava habitualmente em aramaico, que era a língua de uso quotidiano entre os judeus de Israel.
No que diz refere ao grego, a língua franca do Mediterrâneo Oriental, é muito provável que Jesus tivesse conhecimentos desta língua, dado que muitos habitantes das zonas rurais de Israel conheciam esta língua; de modo a comunicar com os habitantes das cidades, que eram na sua maioria gentes de cultura helénica. Além disso, Nazaré era uma pequena povoação situada somente a cinco quilómetros de Séforis, a capital da Galileia, na qual coexistiam judeus e gentios de cultura helenística.
O hebraico era reservado para fins religiosos. As constates referências dos evangelhos à pregação de Jesus nas sinagogas e às suas conversas com fariseus e saduceus sobre os textos das Escrituras, evidenciam que Jesus conhecesse e empregasse a língua hebraica.
Não parece que Jesus tivesse conhecimentos de latim, língua usada somente pelos funcionários imperiais no contacto entre si e por algumas pessoas cultas.
Profissionalmente, Jesus não foi um carpinteiro ao estilo dos nossos dias. Foi um artesão cuja atividade abarcava diversos trabalhos relacionados com a madeira e a pedra.

PROFETA E MESTRE DA SABEDORIA DIVINA
Foi um profeta escatológico, que anunciava a instauração do Reino de Deus. Foi um grande mestre da Sabedoria Divina, inserido na tradição dos profetas de Israel, homens e mulheres, não raras vezes perseguidos e inclusive mortos devido ao seu papel de mensageiros da Sabedoria Divina. Foi alguém dotado de um carisma excecional e um curador da vida. Tinha uma enorme proximidade e atenção preferencial que cultivava em relação aos mais vulneráveis. Jesus anunciou e tornou presente a salvação de Deus, curando homens e mulheres incapazes de viver duma forma saudável, excluídos e marginalizados por serem suspeitos de pecado e impureza. Libertou-os da exclusão e do desespero; reconciliou-os com Deus e promoveu a sua dignificação como seres humanos. Promoveu a mesa comum e a pão partilhado como símbolos de uma nova ordem religiosa e social baseada no respeito pela dignidade de todos os seres humanos e na fraternidade universal.

A BOA NOVA DO REINO DE DEUS
Jesus surpreendeu Israel com a sua pregação: «O Reino de Deus já chegou» (Lc 11, 20). O Reino de Deus está ao vosso alcance: «Vede, o Reino de Deus já está entre vós» (Lc 17, 21). O Reino de Deus pode ser acolhido, sentido e vivido. «O Reino de Deus está dentro e fora de vós» (Evangelho de Tomé, 3). É chegada a altura de acolher Deus que surge como salvador e amigo da vida e da humanidade, na pregação e nos gestos libertadores de Jesus.
Não podia haver boa nova mais emancipadora para o povo de Israel e a humanidade em geral do que o anúncio da vinda do Reino de Deus, que é simultaneamente imanente e transcendente. Segundo Jesus, Deus não vem para destruir, mas para libertar. Não pretende o castigo dos pecadores. Jesus anuncia um Deus que «faz nascer o sol sobre bons e maus, e faz cair a chuva sobre justos e injusto» (Mt 5, 45). Deus não vem para punir ou controlar o mundo. Vem para destruir as forças do mal, com o seu poder criador, redentor e santificador. Deus não vem para reforçar a religião, nem para garantir a observância de uma determinada moral. Jesus não tomou posição a favor do povo eleito e contra os gentios. Não defendeu os justos e cumpridores da lei religiosa judaica, em oposição aos ímpios que a não cumprem. Deus é Pai de todos. Para todos os seres humanos, pretende uma vida mais digna, feliz e próspera.
Ao proclamar a exigência radical de Deus nestes termos: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36), Jesus provocou uma verdadeira revolução. O amor compassivo é o modo de ser de Deus, a sua primeira reação perante o ser humano. Por isso, a compaixão não é, apenas, mais uma virtude humana, mas o modo por excelência de ser, de sentir e de atuar como Deus. Entrar no Reino de Deus é viver focado no amor misericordioso de Deus.
Tudo o que Jesus fez foi inspirado pelo amor compassivo, e teve por objetivo a construção de uma nova sociedade fraterna, equitativa, solidária e acolhedora.
A proclamação de uma ética de amor incondicional é visível na célebre passagem da mulher pecadora (erroneamente identificada com Maria Madalena, uma das principais discípulas), que ungiu os pés de Jesus com perfumes. Respondendo às críticas dos presentes, Jesus disse, «Por isso, digo-te que lhes são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou, mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama. Depois, disse à mulher: os teus pecados estão perdoados» (Lc 7, 47.48). Consequentemente, estabeleceu um vínculo místico essencial entre o amor e o perdão, dois princípios fundamentais da sua mensagem:
 
O TRIUNFO DA VIDA SOBRE A MORTE
Jesus viu-se a si próprio como o Messias anunciado pelos profetas do Antigo Testamento, como um libertador que tinha como finalidade salvar o povo de Israel e a humanidade em geral das diversas formas de opressão que alienam o ser humano como sujeito criado à imagem e semelhança de Deus.
A sua popularidade no povo judeu, a sua interpretação inclusiva da lei religiosa judaica, a sua crítica à ordem social vigente e sobretudo a sua proclamação do Reino de Deus terão sido causas essenciais para o levar à morte, ordenada pelo prefeito Pôncio Pilatos, com a cumplicidade das altas autoridades religiosas judaicas.
Contudo, pouco tempos depois, os discípulos começaram a proclamar que Jesus estava vivo, fora ressuscitado e exaltado na glória com Deus.
A ressurreição de Jesus pode ser compreendida como uma passagem para uma outra dimensão, distinta da dimensão espácio-temporal na qual estamos inseridos, uma ascensão à esfera da realidade última e absoluta que é Deus.
À primeira vista, a crucificação de Jesus era o símbolo de esperança não apenas derrotada, mas esmagada e dizimada. A crucificação de Jesus causou desorientação e desânimo nos seus discípulos. Mas, passado pouco tempo, desenvolveu-se um movimento espiritual particularmente dinâmico que transformou radicalmente o percurso histórico da Humanidade. Este surto de energia humana desenvolveu-se porque Jesus havia ressuscitado, com base no princípio de que a sua ressurreição deve ser concebida como a declaração divina de que a sua vida é a revelação por excelência de Deus na história humana..
O movimento de Jesus, no qual de baseou o cristianismo primitivo, era um movimento que radicava nos ensinamentos do Mestre e na tradição judaica, embora existissem influências das filosofias estoica e cínica e da mitosofia mistérica helenística.
Jesus foi o inspirador de um movimento espiritual que se reuniam em seu nome para viver a experiência do Espírito de Deus. Neste movimento, os homens e as mulheres tinham de início papéis absolutamente equivalentes, um aspeto essencial que foi não raras vezes esquecido, e que importa revalorizar. 
O Evangelho de Marcos diz-nos: «Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus» (Mc 15, 39). Esta frase do Novo Testamento expressa a relação íntima de Jesus com Deus, de modo que Jesus é a manifestação humana por excelência de Deus. Jesus revela Deus através das palavras e atos, na sua práxis libertadora, na sua opção pelos pobres e no movimento de homens e mulheres que tem compartilhado seu projeto de vida ao longo dos últimos dois milénios. A sua relação com Deus é tão estreita que tudo Jesus diz e faz é Deus que fala e age.
Na humanidade exemplar de Jesus, apreende-se o rosto do Pai (Abba) e o sentido glorioso da sua divindade. Como disse uma vez Leonardo Boff: «Quando mais humano se apresenta Jesus, mais Deus se manifesta. Quando mais Deus é Jesus, tanto se revela aí o ser humano».

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Cruzadas em Jerusalém: uma histórla alternativa

 
 
No reino de Jerusalém, instituído pelos cruzados em 1099, existiam duas grandes tendências. A primeira tendência defendia uma postura conciliadora, através de pactos com os poderes muçulmanos e do desenvolvimento de alianças externas. De ponto de vista religioso, preconizava uma política de tolerância com os muçulmanos e os judeus. A segunda tendência era politicamente avessa a quaisquer acordos com o Islão e era religiosamente exclusivista. 
Eis o relato imaginário de um reino de Jerusalém alternativo, que se afirmou, apesar de todas as dificuldades, como uma pátria no qual coexistiam lado a lado cristãos, judeus e muçulmanos, em plena Idade Média. Um reino de paz e consciência.
 
O reinado de Balduíno IV
Em 1174, o rei Amalrico de Jerusalém morreu e sucedeu-lhe o seu filho Balduíno IV, um adolescente de 13 anos. Embora dotado de uma fortaleza e inteligência extraordinárias, a sua saúde física era precária, dado que contraiu lepra.
O cronista Guilherme de Tiro, nomeado tutor e docente de Balduíno, adorava o jovem monarca:
“ O menino, então com nove anos, foi entregue aos meus cuidados para ser instruído em estudos liberais. Dediquei-me ao meu pupilo real. Ele era de formosa aparência e continuava a fazer progresso nas letras, e cada vez mais prometia desenvolver uma disposição adorável. Era um excelente cavaleiro. Tinha mente aguda e boa memória.”
Devido ao facto de Balduíno IV ser menor de idade, a regência do reino de Jerusalém foi assumida pelo conde Raimundo III de Trípoli, primo do rei, que tentou restaurar a estabilidade no reino, nomeando o tutor real Guilherme como chanceler.
Entretanto, o pesadelo estratégico que sempre perseguira o reino de Jerusalém materializou-se: Saladino, o governante muçulmano do Cairo, uniu de forma progressiva, mas firme, a Síria, o Egito, o Iêmen e a maior parte do Iraque num poderoso sultanato islâmico em torno de Jerusalém.
Raimundo de III Trípoli, na qualidade de regente do reino, ganhou tempo ao negociar uma trégua com Saladino.
Mas a estabilidade interna do reino de Jerusalém era minada pelo conflito cada vez mais aceso entre duas grandes fações políticas.
A primeira grande tendência, conhecida como o “partido dos barões”, era liderada por Raimundo III. Era defensora do pragmatismo para assegurar a sobrevivência do reino, através de pactos com os poderes muçulmanos e do desenvolvimento de alianças externas, como por exemplo com o Império Romano do Oriente. De ponto de vista religioso, preconizava uma política de tolerância com os muçulmanos e os judeus. Contava com o apoio dos principais setores da nobreza jerosomilitana, dos hospitalários e de uma parte dos templários.
A segunda tendência era corporizada pelo denominado “partido da corte”, assim chamado porque se reunia em torno da rainha-mãe Inês de Courtenay. Era sobretudo constituído por nobres chegados da Europa ansiosos para obter riqueza e gloria. Consideravam as propostas de pactuar com o Islão como uma traição e opunham-se á celebração de alianças com o Império Romano do Oriente. Os seus membros mais destacados eram Joscelino III, conde titular de Edessa e irmão da rainha-mãe, Reinaldo de Chatillon, senhor da Transjordânia, e Guido de Lusignan. 
Entretanto, o problema de sucessão ficou resolvido pelo nascimento do príncipe Balduíno, filho da princesa Sibila, irmã do rei, e de Guilherme de Monferrato, um nobre italiano que se tinha tornado conde de Jafa e Ascalão. Contudo, Guilherme de Monferrato não conheceu o filho, dado que morreu de malária em junho de 1177, deixando Sibila grávida com o futuro rei Balduíno V.
A rivalidade entre ambas as tendências converteu-se em conflito aberto em 1180. A princesa Sibila estava viúva. O «partido da corte» obteve uma vitória ao arrancar do rei autorização para que Sibila casasse em segundas núpcias com Guido de Lusignan. Além disso, a rainha-mãe Inês conseguiu que o seu partidário Heráclio, bispo de Cesareia, ascendesse ao patriarcado de Jerusalém, o lugar cimeiro da hierarquia eclesiástica do reino. Raimundo III e o «partido dos barões» ficaram na defensiva.
Aparentemente com uma posição preponderante, os membros do «partido da corte» mostravam cada vez mais a sua arrogância, mesmo que isso colocasse em causa a política geral do rei e a segurança do reino. Foi o caso de Reinaldo de Chãntillon, senhor da Transjordânia, que aproveitou o seu feudo fronteiriço para atacar as caravanas que se deslocavam entre o Egito e a Síria e que passavam no seu território ou nas áreas proximidades. Organizou igualmente uma frota que pirateava o Mar Vermelho aterrorizava os peregrinos muçulmanos que iam para a Meca. Tentou inclusive por duas vezes – sem sucesso – atacar Meca e Medina. Para ele, o ódio e a oposição absoluto ao Islão eram um dever sagrado.
Como seria de esperar, Saladino reagiu e pediu explicações ao rei, considerando que estes atos constituíam uma violação grosseira das tréguas negociadas.
Balduíno IV reagiu e repôs a sua confiança no «partido dos barões», liderado por Raimundo III, que se tornou no principal conselheiro do monarca.
No entanto, o agravamento da saúde frágil do monarca provocou uma nova confrontação política, nomeadamente a questão da designação da regência quando falecesse, dado que o herdeiro do trono era uma criança.
Balduíno IV designou Raimundo de Trípoli como futuro regente, devido á crescente aversão que tinha pelo cunhado Guido de Lusignan e caso o seu herdeiro falecesse sem descendência, determinou que a designação do futuro rei fosse feita por uma comissão constituída pelo papa, pelo imperador bizantino e pelos reis da França e da Inglaterra.
A História factual mostra que o «partido da corte» reagiu energicamente e promoveu um verdadeiro golpe de Estado, conseguindo tomar o poder na sequência da morte de Balduíno IV, desencadeado uma série de acontecimentos que levaram ao colapso final do reino de Jerusalém, em 1187.
O ponto de viragem da História contrafactual é a postura de princesa Sibila, irmã do rei Balduíno e mãe do herdeiro Balduíno V.
Como tinha sido referido, Sibila tinha casado com Guido de Lusignan, um dos membros mais prominentes do «partido da corte», devido à influência da sua rainha-mãe Inês de Courtenay.
Guido de Lusignan revelou-se um marido agressivo e possessivo, o que provocou o desgosto e a ira de Sibila. Além disso, o seu fanatismo intransigente pareceu-lhe cada vez mais perigoso para o futuro do reino. 
Até então dividida entre o carinho pela mãe, a líder do “partido da corte”, e o afeto pelo irmão, o rei Balduíno IV, Sibila tomou uma decisão arrojada. Decidiu apoiar o «partido dos barões», de uma forma discreta, mas decidida. Aproximou-se de Raimundo III e sobretudo de Balian de Ibelin.
O ilustre barão Balian de Ibelin era um dos nobres mais prestigiados do reino. Para além da sua valentia e capacidade estratégica, era um homem inteligente e engenhoso. Sabia falar e escrever fluentemente em latim, grego e árabe. Na administração dos seus domínios senhoriais, era conhecido pelo seu sentido de justiça, pela promoção da coexistência pacífica entre cristãos, judeus e muçulmanos e pelas suas medidas de fomento do povoamento e das atividades económicas.
Para além de ser um membro proeminente do «partido dos barões», tinha um conjunto de contactos externos, quer com o Império Bizantino quer com os poderes muçulmanos. O rei Balduíno IV tinha-o incumbido de missões diplomáticas, nas quais revelou a sua competência e lealdade. Como recompensa dos seus serviços prestados, foi nomeado senhor de Nablus.
Da aproximação política entre Sibila e Balian, resultou rapidamente um amor proibido. Balian era um homem formoso, afável e inteligente. Por seu turno, Guido era um homem agressivo e insolente. Os dois aliados, ou antes, os dois amantes, começaram para empenhar todos os seus esforços para afastar o «partido da corte» do poder. 
Pressentindo o caráter fatal da doença que o atormentava cada vez mais, Balduíno IV alimentou a intenção de casar a sua irmã Sibila com Balian de Ibelin, Também não lhe era estranho o carinho que a sua irmã devotava a Balian.
Em julho de 1184, a rainha-mãe Inês de Courtenay morreu em Acre. O «partido dos barões» considerou que era chegada a altura para vencer o campo adversário.
Em agosto de 1184, Balduino nomeou Balian marechal do reino, ou seja, responsável máximo da defesa militar. Esta decisão desagradou profundamente Guido de Lusignan e os seus colegas do «partido da corte», que reforçaram os seus esforços conspirativos para assumir o trono real.
Procurando provocar diretamente o «partido da corte», Balian propôs que o rei tomasse a decisão de colocar as guarnições da Transjordânia na sua dependência direta do marechal, ou seja, de Balian, alegando a relevância de coordenar a defesa fronteiriça 
De uma forma temperamental, Reinaldo mobilizou as suas tropas em Kerak e Guido de Lusignan rumou a Jerusalém com um esquadrão de cavalaria. Mesmo outros membros influentes do «partido da corte», como Joscelino III, conde titular de Edessa, e o patriarca Heráclio, afastaram-se destas iniciativas mais radicais.
O rei Balduíno V considerou estes atos como crimes de lesa majestade e ordenou a prisão de Guido de Lusignan e Reinaldo de Châtillon, entre outros.
Balian, encabeçando as tropas reais, enfrentou as forças militares afetas a Guido de Lusignan e Reinaldo de Châtillon. Guido de Lusignan foi capturado em Betânia, após os seus cavaleiros terem sido derrotados. Em Kerak, Reinaldo de Châtillon resistiu. Mas a população, com o apoio de uma parte de guarnição, revoltou-se e entregou Reinaldo a Balian.
Habitualmente clemente e tolerante, Balduíno IV teve que tomar decisões difíceis. Mas a independência e a sobrevivência do reino tinham que ser preservados. Guido de Lusignan e Reinaldo de Châtillon foram julgados sumariamente e executados.
Como medida de apaziguamento, Joscelino III, conde titular de Edessa, e o patriarca Heráclio, e outros membros destacados do «partido da corte» foram poupados. Foi o que aconteceu a Geraldo de Ridetori, mestre da Ordem dos Templários, que estava próximo do «partido da corte», devido a divergências com Raimundo de Trípoli. Sentindo a mudança no rumo de acontecimentos, acabou por apoiar o «partido dos barões», que tinha já a simpatia de uma grande parte dos templários, muitos dos quais achavam que o reino de Jerusalém só poderia manter-se através de uma coexistência negociada com as potências presentes na região. A postura apaziguadora do rei, aconselhado por Balian e Raimundo, desempenhou um papel essencial.
Em 24 de dezembro de 1184, véspera de Natal, assinalou-se o casamento de Sibila e Balian de Ibelin. Foi a última grande alegria do rei Balduíno IV, cada vez mais enfermo, que alterou o testamento. Com o conselho de Raimundo da Trípoli, ficou determinado que a regência do reino fosse assumida conjuntamente por Sibila e Balian e que em caso de morte de Balduíno V sem descendência, Sibila seria a rainha.
 
O breve reinado de Balduíno V
Em 16 de março de 1185, Balduíno IV morreu e o seu sobrinho Balduíno V tornou-se rei, com Sibila e Balian como co-regentes. Na qualidade de co-regentes, Sibila e Balian procuraram reforçar as defesas do reino. Cada vez mais se aperceberam de que a salvaguarda da independência do reino carecia de reformas profundas.
Contudo, a saúde de Balduíno V era frágil, tendo falecido em 1 de julho de 1186. Em 20 de julho de 1196, o patriarca Heráclio depositou a coroa na cabeça de Sibila. Durante a cerimónia de coroação, chamou Balian para ser coroado com ela. O «partido dos barões» tinha triunfado.
 
O reinado de Sibila e Balian
Os novos reis tinham dois grandes desafios. Um era alcançar uma paz duradoura com Saladino, a principal potência muçulmana do Médio Oriente. O outro era fazer do reino de Jerusalém um verdadeiro Estado, dotado de uma unidade política genuína.
Desde a criação do reino, em 1199, os sucessivos monarcas não tinham impedido a consolidação dos poderes senhoriais- Limitavam-se a liderar as operações militares com os recursos que os senhores e as ordens militares lhes forneciam e as tropas que conseguiam recrutar nos domínios régios, para além das unidades de cruzados que afluíam à Terra Santa. Contudo, progressivamente, formou-se uma corrente de membros da Suprema Corte influenciada pelas ideias jurídicas e políticas do direito romano que defendiam que o rei deveria ser um líder político soberano e não somente um primum inter pares. A Coroa deveria ser a autoridade suprema responsável pela paz e pela justiça, uma conceção que era partilhada tanto pelo direito romano como pelo direito islâmico.
Sibila e Balian começaram por promulgar um conjunto de leis gerais, aplicáveis a todo o reino. Posteriormente, começaram por organizar uma verdadeira administração política do território e em organizar as finanças do reino, com base na economia citadina.
No que respeita à política externa, Sibila e Balian celebraram um pacto com o papado, assumindo o compromisso da concessão de uma soma anual. Foram ainda assinados tratados de aliança com o Império Romano do Oriente, o Reino da Pequena Arménia e o Principado de Antioquia.
Em 1 de março de 1190, foi assinado com Saladino o Tratado de Pela, na Transjordânia, que estabeleceu uma paz permanente. Saladino reconheceu a independência e a integridade territorial do reino de Jerusalém. Como contrapartida, Sibila e Balian aceitaram a restituição da mesquita da Al-Aqsa ao culto islâmico e a liberdade dos muçulmanos peregrinarem pacificamente a Jerusalém. Foi autorizada a fixação de número limitado de muçulmanos e judeus (50 famílias de cada confissão) na Cidade Santa. Contudo, o monte do Templo, incluído o Domo da Rocha, permaneceu sob soberania cristã. Foi igualmente reconhecida a liberdade de culto para cristãos, judeus e muçulmanos, quer no reino de Jerusalém, quer no império de Saladino.
A escolha de Pela foi especialmente simbólica. Pela foi a cidade que acolheu os cristãos de Jerusalém que fugiram às guerra judaico-romanas nas décadas de 60 e 70 do século I da nossa era. Era uma cidade na qual coexistiam lado a lado judeus, cristãos e pagãos. Depois da conquista islâmica, na século VII, passou também a incluir muçulmanos.
O papa Celestino III, um homem conciliador, ratificou o tratado, através da bula Sancta Ierusalem, de 5 de julho de 1190, criando condições para a paz na Terra Santa.

 

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Orígenes: a ponte entre o cristianismo e a fllosofia da Antiguidade


Uma vida notável
Quando Orígenes nasceu, Alexandria era um das principais cidades do mundo. No Império Romano, a sua importância somente era superada pela capital imperial. Para além da sua relevância estratégica e económica, Alexandria era conhecida como a cidade do saber e da filosofia, no qual confluíam as grandes correntes da sabedoria do Oriente e do Ocidente.
Quando o jovem Orígenes começa a sua aprendizagem, está em pleno desenvolvimento um dos principais sistemas de pensamento da filosofia da Antiguidade Clássica: o neoplatonismo. Orígenes, o seu homónimo pagão e Plotino foram discípulos de Amonio Saccas.
O sistema neoplatónico considera o Uno como o princípio superior de todo o Universo. O Uno está acima de todos os opostos e é infinitamente perfeito em si mesmo. Os seus principais atributos são a transcendência, a ininteligibilidade e a inacessibilidade. Ele é todas as coisas e nenhuma delas. É aquilo de que emana toda a existência, toda a vida e todo a valor, mas ele próprio é de tal ordem que nada podemos afirmar a seu respeito, nem a vida, nem a essência; é superior a tudo e fonte absoluta de tudo.
Na sua absoluta plenitude, ele transborda e produz consciência, que é a totalidade de todas as Ideias ou Arquétipos.
O Uno manifesta-se através de uma Tríade. Do Uno emana a Tríade: Ser, Inteligência e Criação, que são os Arquétipos, mediante os quais o Uno enquadra, pensa e forma o Universo. O Ser é a energia e a inspiração com todas as possibilidades do Uno. Porém, necessita do esquema da formação que lhe dá a Inteligência. E esta Inteligência concretiza-se na Criação.
Através de um aprofundamento filosófico, a alma pode tornar-se consciente da totalidade e elevar-se ao puro mundo das Ideias e alcançar a contemplação e a união com o Uno Absoluto.
Orígenes, cujo nome significa “Filho de Hórus”, nasceu numa família cristã de Alexandria. Com dezassete anos, Orígenes, o mais velho de sete irmãos, enfrentou uma tragédia que o marcou para o resto da vida. O seu pai, Tito Flávio Clemente, um homem que valorizava a educação dos seus filhos, foi preso e decapitado por causa das suas convicções religiosas. Os bens da família foram confiscados.
Uma mulher cristã rica acolheu Orígenes, que pôde deste modo prosseguir os estudos. De modo a sustentar a sua mãe e os seus irmãos, abriu uma escola de gramática e continuou a estudar com o filósofo Amonio Sacas, entre outros professores.
Perante as perseguições de que os cristãos foram alvo, Orígenes não se escondeu. Tratava da formação dos seus discípulos. Apoiava os cristãos que são presos ou condenados à morte. Ainda jovem, Orígenes mostrou que não era apenas um excelente professor, mas também um líder espiritual.
Orígenes assumiu a direção da famosa Escola Catequética de Alexandria, fundada por Clemente de Alexandria, um pensador cristão que também preconizava uma relação dialogante entre o cristianismo e a filosofia grega. Orígenes reorganizou e promoveu a escola. Na sua perspetiva, as diversas ciências, incluindo a matemática, a geometria, a astronomia, a lógica, a ética e a metafisica devem estar ao serviço de uma compreensão mais ampla do Divino. Além disso, a escola estava aberta a todos que desejam frequentar, sejam cristãos, pagãos ou judeus.
Orígenes teve um estilo de vida ascético. Renunciou ao matrimónio e à posse de bens materiais. Dormia no chão, andava sem calçado e abstinha-se de beber álcool. Dedicava-se ao estudo e à oração. Embora Orígenes tenha seguido um padrão de vida ascético e sóbrio, não obrigava ninguém a seguir o seu estilo de vida, pois considerava que cada pessoa tem a sua responsabilidade pessoal e deveria fazer o seu próprio caminho espiritual.
Em 231, Orígenes foi obrigado a abandonar Alexandria devido à animosidade do bispo Demétrio, que conseguiu o apoio do bispo de Roma, Ponciano, contra a perspetiva de alguns bispos da Palestina, que o apoiavam.
As razões deste conflito prenderam-se com as perspetivas filosóficas e teológicas de Orígenes, que defendia uma relação dialogante entre o cristianismo e a filosofia da Antiguidade e uma visão da espiritualidade baseada na mística e no amor. Desde então, Orígenes passou a viver em Cesareia, na Palestina, onde prosseguiu as suas atividades com grande êxito, fundando a Escola de Cesareia, nos moldes da Escola Catequética de Alexandria.
Na sequência da perseguição aos cristãos ordenada pelo imperador Décio, Orígenes foi preso e torturado. Entretanto, foi libertado, mas a tortura deixou sequelas que causaram a sua morte.
Mas a maior tragédia para Orígenes veio depois da sua morte. No quinto Concílio Ecuménico, realizado em Constantinopla em 553, um conjunto significativo de ideias de Orígenes, como a preexistência da alma, foram condenadas como heréticas, devido ao peso crescente dos setores que defendiam uma perspetiva exclusivista e fechada do cristianismo. A maior parte das suas obras foram destruídas, o que constitui uma perda irreparável para o cristianismo e a Humanidade em geral.
O diálogo entre o cristianismo e a filosofia da Antiguidade
O pensamento de Orígenes baseia-se no esquema platónico e gnóstico de distinção entre o mundo dos arquétipos e do mundo dos fenómenos, da queda e do retorno.
Orígenes dá uma grande relevância à questão da origem, da essência e do espírito, à semelhança do que acontece com os cristãos gnósticos.
Orígenes propõe uma visão global de conjunto que busca a conciliação entre o cristianismo e a filosofia da Antiguidade, com base num determinado conjunto de conceitos fundamentais:
- Deus, que constitui o centro por excelência do pensamento de Orígenes, que rejeita qualquer compreensão antropomórfica. Deus é concebido como o Uno primordial, a origem da vida, o espirito puro, absolutamente transcendente e incomensurável.
- Logos. O Logos é o próprio Deus e é simultaneamente a hipóstase de Deus. O Logos é a imagem perfeita e a ideia essencial de Deus. Apesar de ser uma essência de Deus, está subordinado a Deus.
- Espirito Santo. Na perspetiva de Orígenes, o Espirito Santo constitui a terceira hipóstase de Deus. Orígenes refere que em Deus existem três hipóstases em Deus, criando as bases de uma conceção trinitária de Deus.
- Seres espirituais. Todos os «seres espirituais» chamados logikoí, foram criados por Deus em liberdade, mas devido a uma falha original foram condenados. Os seres que cometeram uma falta ligeira tem um corpo etéreo, sendo os anjos. Os que cometeram uma falta mais grave tem um corpo opaco, sendo os demónios. Os seres humanos ocupam uma posição intermediária. Contrariamente ao que estabelecem certas correntes gnósticas, o mal não é da responsabilidade de um ser divino inferior, mas o resultado do uso irresponsável da liberdade das criaturas.
- Salvação. A salvação dos seres espirituais passa pelo retorno ao mundo superior, puro e eterno, da luz, facilitada pela encarnação do Logos. O Logos feito humano atua como mediador entre os seres espirituais e Deus: um anjo para os seres humanos, um ser humano para os seres humanos.
- Alma: A alma tem possibilidade de alcançar a perfeição, em liberdade e progresso. A vida interior é entendida como um processo espiritual de ascensão do espirito para além da vida terrena e material, até que a alma chegue à união com a divindade, tornando-se divina e imortal.
- Apokatástasis. Orígenes reconhece a pluralidade de formas de salvação do mundo. No fim, Deus será tudo em todos. O mal desaparecerá e tudo será restituído à pureza espiritual original. Os espíritos malignos serão igualmente salvos. Segundo Orígenes, Deus sai triunfante de tudo e apesar de tudo o que é negativo. 
 
A interpretação dos textos sagrados
Na interpretação dos textos sagrados, Orígenes afastou-se do literalismo. Tal como o ser humano é constituído por três dimensões – o corpo, a alma e o espirito – Orígenes preconizava que a compreensão adequada das Escrituras tinha três sentidos:
- O sentido somático-literal histórico, baseado na compreensão literal e material dos textos;
- O sentido psíquico-moral, que busca uma perspetiva mais ampla dos textos, para a qual o conhecimento dos clássicos é um fator relevante, tendo em conta que a filosofia é considerada como a propedêutica do cristianismo;
- O sentido pneumático-alegórico-teológico, que estabelece a ligação entre o exotérico e o esotérico. E a fase da gnose e da sabedoria interior, no qual se experimenta com todo o ser o Divino em tudo e em todos. Neste sentido, os textos das escrituras são transformados para o nível de alegorias.


A antropologia segundo Orígenes
Segundo Orígenes, o ser humano é um microcosmos no macrocosmos uma conceção que encontramos em diversas correntes filosóficas. Ele afirma: «Compreendei, pois, que sois, um segundo mundo em pequeno, que o Sol, a Lua e as estrelas estão dentro de vós».
Todas as almas humanas serão salvas por uma purificação no caminho de consumação de corpo em corpo, até à sua transformação em anjos. Orígenes mostrou abertura em relação à doutrina da reencarnação, muito presente na filosofia grega, nomeadamente em Pitágoras, Sócrates, Platão e na corrente òrfica.
Orígenes considera que o Universo é constituído por uma série de mundos habitados, onde a alma se aperfeiçoa. Diz-nos Orígenes: «Deus não começou a agir pela primeira vez quando criou este nosso mundo visível. Acreditamos que (...) antes deste houve muitos outros».
Orígenes acredita que tudo no universo tende a voltar a Deus, o ponto ômega. «Todos os espíritos se purificarão em sua marcha progressiva pela eternidade em direção a Deus, uma marcha longa e gradual, de correção e expiação, passando, portanto, por inúmeras reencarnações em mundos sucessivos». Diz Orígenes: «Devemos crer que (...) todas as coisas serão reintegradas em Deus (...). Isso, porém, não acontecerá num momento, mas lenta e gradualmente, através de infinitos séculos, já que a correção e a purificação advirão pouco a pouco e singularmente: enquanto alguns com ritmo mais veloz se apressarão como primeiros na meta, outros os seguirão de perto e outros ainda ficarão muito para trás. E assim, através de inumeráveis ordens (...)».
Orígenes valoriza a liberdade e o livre arbítrio de todas as criaturas, em todos os níveis de sua existência. É o uso responsável do livre arbítrio, juntamente com uma compreensão esclarecida do sentido do universo, que permite ao espírito unir-se ao amor infinito de Deus. Assim, terá cumprido o círculo, partindo do ponto de ignorância absoluta ao de sabedoria absoluta, sempre em direção a Deus.
Inspirado na filosofia grega, Orígenes faz uma distinção entre espirito, alma e corpo. Contrariamente a muitos pensadores da sua época, Orígenes tinha uma visão otimista da condição humana nas suas dimensões espiritual e física. Na sua perspetiva, o corpo era fundamental para a salvação da alma. Segundo ele «o mundo dos nossos sentidos tornou-se num mundo material por necessidade dos espíritos que precisavam de uma vida na matéria corpo».
O corpo, que Orígenes considerava como microcosmo, era um meio auxiliar com o qual o espírito se adaptava às circunstâncias do mundo material.~


Uma mística do amor
Orígenes propõe uma mística do amor, pois considera que a finalidade da condição humana é a contemplação e a união de Deus. Esta mística expressa-se de forma verdadeiramente admirável no seus comentários sobre o livro bíblico do Cântico dos Cânticos:
«A alma é impelida pelo amor celeste e pelo desejo quando, vendo o belo esplendor da palavra, se enamora da sua esplendorosa figura e recebe assim a seta e a ferida do amor. Esse Logos é, com efeito, imagem e semelhança do Deus invisível, do primogénito de toda a criação, em quem tudo, foi criado visível ou invisível, quer no Ceu quer na Terra.» 


Uma visão universalista da História
A história da Humanidade é considerada como um processo educativo grandioso que conduz à sua salvação, como uma pedagogia (paideía) de Deus com o ser humano. Isto significa que a imagem de Deus obscurecida pelo pecado é restabelecida em Cristo, mediante a providência e a intervenção educativa de Deus. Em Cristo, dá-se a «união da natureza divina com a natureza humana para que a humana se converta em divina mediante uma estreita união com o Divino». A encarnação de Deus é uma condição essencial para a divinização da Humanidade.

sábado, 12 de março de 2016

Hipátia, a última grande filósofa da Antiguidade Clássica


8 de março de 415. Alexandria, Egito, então província do Império Romano do Oriente. Uma multidão de fanáticos atacou e matou de forma bárbara uma mulher. O seu nome era Hipátia, filósofa, matemática e astrónoma, uma das mulheres mais fascinantes da Antiguidade Clássica e da História da Humanidade.

Alexandria na época de Hipátia
Hipátia nasceu em 355 em Alexandria, uma das maiores metrópoles do mundo de então, com um milhão de habitantes. Fundada em 331 A:C. por Alexandre Magno, prestigiada pela Biblioteca, pelo Museu (um grande centro filosófico e científico) e pelos seus templos. Mas também era um centro da maior importância para o judaísmo e o cristianismo. Em Alexandria, localizava-se a maior comunidade judaica fora da terra bíblica de Israel, na qual foi feita a tradução das Escrituras Hebraicas (o Antigo Testamento) da língua original para o grego, então a língua internacional por excelência. Por seu turno, Alexandria acolhia também uma comunidade cristã forte e vigorosa, merecendo destaque a célebre Escola Catequética de Alexandria, porventura o principal centro de pensamento teológico do cristianismo dos primeiros séculos.  
Na sua qualidade de capital do Egito, uma das principais possessões romanas, era governada por um prefeito nomeado diretamente pelo Imperador.
Em 395, com a morte do imperador Teodósio, o Império Romano foi definitivamente dividido em dois: o  o Império Romano do Ocidente, com capital em Roma, e o Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla.

A vida e obra de Hipátia
Hipiatia foi criada num ambiente marcado pela filosofia e pelas ideias. O seu pai, Théon, bibliotecário da Biblioteca de Alexandria, era um estudioso do Museu, conhecido pelos filósofos e cientistas ilustres, nomeadamente os seguintes: Euclides (360-295 A.C.) , Eratóstenes de Cirene (276-194 A.C.), Arquimedes de Siracusa (287-212A.C..), Apolónio de Perga (262-194 A.C.), Aristarco de Samos (310-230 A.C.), Hipsicles (190-120 A.C.), Héron de Alexandria (10-80), Nicómano (60-120), Menelau de Alexandria (70-130),  e Ptolomeu de Alexandria (90-168).
Teve uma formação multidisciplinar, englobando filosofia, matemática, astronomia, religião, poesia, artes, oratória e retórica.
Valorizando o ideal helenístico de uma mente sã num corpo são, submetia-se quotidianamente a uma rigorosa disciplina física.
Na sua juventude, esteve em Atenas, de modo a aprofundar a sua formação na Academia, fundada por Platão. Destacou-se pela dedicação para unificar a matemática de Diofanto com o neoplantonismo de Amonio Sacas e Plotino, mediante a aplicação do raciocínio matemático ao conceito neoplatónico do Uno, que se refere ao Divino, dado que a sua principal característica é a indivisibilidade.
Hipátia detinha uma grande autoridade ética.  As generalidades das fontes históricas descrevem-na como um modelo de coragem ética, retidão, veracidade, dedicação cívica e elevação intelectual. A virtude mais venerada nela pelos contemporâneos era a sua sophrosyne, um estado de espírito caraterizado peto autoconhecimento, que enquadrava tanto a sua conduta social como as suas qualidades interiores. Manifestava-se através na moderação do modo da vida, na modéstia, e na dignidade da atitude que mantinha tanto perante os seus alunos como perante os que tinham posições de poder.
Hipátia valorizava o amor pela sabedoria na sua diversidade e a liberdade de espírito. Daí ter na sua escola alunos pagãos, cristãos e judeus. Entre os seus alunos cristãos, merecem ênfase Sinésio, bispo de Plotemais, cidade situada na Cirenaica (atual Líbia) e Orestes, prefeito de Alexandria.
Sinésio estabeleceu uma correspondência frequente com Hipátia, à qual se dirigia como “minha mae, minha irmã e benfeitora minha”.Através destas cartas, sabemos que Hipátia desenvolveu alguns instrumentos usados na Física e na Astronomia, entre os quais o hidrómetro. Sabemos também que desenvolveu estudos sobre a Álgebra de Diofanto (“Sobre o Cânon Astronómico de Diofanto”), tendo escrito um tratado sobre o assunto, além de comentários sobre os matemáticos clássicos, incluindo Ptolomeu. Em parceria com o pai, escreveu um tratado sobre Euclides. Ficou famosa por ser uma grande solucionadora de problemas matemáticos e filosóficos.
Focada no processo de aprofundamento e transmissão da sabedoria, quando lhe perguntavam a razão por que não casara, respondia que já era casada com a Verdade.

O caminho para a tragédia
Hipátia viveu numa época marcada por transformações profundas, que marcaram decisivamente o percurso histórico da Humanidade.
O reinado de Teodósio (379-395), o último imperador a governar um Império Romano unido, marcou o auge da transformação do cristianismo, que se tornou na religião oficial do Império, de uma forma cada vez mais exclusivista.
Em 24 de novembro de 380, Teodósio promulgou o Edito de Tessalónica, que consagrou o cristianismo definido pelo Concílio de Niceia como a única religião oficial. Com este diploma, a liberdade religiosa prometida por Constantino através do Edito de Milão de 313 foi posta de parte. Não foram somente as diversas formas de paganismo que foram ilegalizadas. As próprias correntes do cristianismo que não se identificavam com a ortodoxia definida em Niceia, como o gnosticismo e o arianismo, foram são marginalizadas. Embora continue a ser tolerado, o estatuto jurídico do judaísmo foi desvalorizado.
Estava dado o mote para promover a intolerância, a autocracia e a perseguição das ideias consideradas adversas pelos poderes instituídos.
Em 391, o templo de Serápis e a sua famosa biblioteca foram destruídos por uma multidão instigada pelo patriarca Teófilo. 
Com a ascensão de Cirilo ao cargo de patriarca de Alexandria, em 412, a violência contra os pagãos, os judeus e os cristãos considerados heréticos ou dissidentes tornou-se cada vez mais frequente. 
A comunidade judaica, constituída por 40.000 pessoas, foi expulsa, após um conjunto de incidentes violentos. Os cristãos que não concordavam com as ideias e as práticas de Cirilo também foram perseguidos, dentro e fora de Alexandria.
O prefeito imperial, Orestes, antigo de Hipátia, tentou restabelecer a ordem pública e enfrentou diretamente o cada vez mais poderoso patriarca. Frequentemente, procurava o conselho de Hipátia, nos assuntos governamentais, o que provocou a fúria de Cirilo contra a filósofa.
Em março de 415, uma multidão de monges apoiantes de Cirllo, conhecidos como parabolanos, atacaram Hipátia á porta de sua casa. Arrastaram-na para o interior de uma igreja, despiram-na e torturavam-na até à morte com conchas e pedaços de telha. Por fim, queimaram os seus restos mortais. 



O legado 
A vida filosófica de Alexandria não se apagou completamente com a morte de Hipátia. Filósofos e cientistas continuaram os seus estudos na Antiguidade tardia. Muitas mulheres dessa época dedicaram-se à filosofia, e, entre elas, Sosípatra foi uma filósofa influente da Antiguidade tardia, que ensinou filosofia em Pérgamo, na atual Turquia. No século V, muitas outras pagãs e cristãs sábias viviam em Alexandria, entre as quais: a filósofa Asclepigénia, filha de Plutarco; Edésia, filósofa e mãe de filósofos; Santa Teodora, Eugénia e Santa Maria Egipcíaca.
Mas a morte de Hipátia foi um marco fortemente negativo da História da Humanidade. Marcou o triunfo da intolerância contra a diversidade, da autocracia contra a liberdade, da luz contra as trevas.
Na sua obra magistral “Cosmos”, Carl Sagan analisa desta forma lúcida a morte de Hipátia e as suas trágicas consequências: 
“Há cerca de 2.000 anos, emergiu uma civilização cientifica esplêndida, na nossa História, e a sua base era Alexandria. Apesar das grandes oportunidades de florescer, ela decaiu. A sua última cientista foi uma mulher, considerada pagã. O seu nome era Hipátia. Com uma sociedade conservadora a respeito do trabalho da mulher e do seu papel, com o aumento progressivo do poder da Igreja, formadora de opiniões e conservadora quanto às ciências e devido a Alexandria estar sob o domínio romano, após o assassinato de Hipátia, em 415, essa biblioteca  foi destruída. Milhares de preciosos documentos dessa biblioteca foram em grande parte queimados e com ela todo o progresso científico e filosófico da época”.
Um contemporâneo de Hipátia, o filósofo Temístio de Pflagónia, tinha feito o seguinte pedido ao imperador Teodósio: “Mesmo sendo um só o verdadeiro e grande juiz, o seu caminho até ele não é único. Seria tentado a dizer que seja o próprio Deus a não aceitar que entre os homens haja uma harmonia total”. O próprio Jesus referiu-se à diversidade de vias para alcançar o Divino quando disse: “Na casa do meu Pai, há muitas moradas”.
Infelizmente, Cirilo, que se considerava a si próprio como paladino do cristianismo, pareceu esquecer-se igualmente de outras palavras sábias de Jesus:
“Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende a candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas sim em cima do candelabro, e assim alumia a todos os que estão em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu”.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Je suis parisien

Na passada sexta-feita, dia 13 de novembro, a barbárie irrompeu novamente no centro da Europa. As trevas ensombraram Paris, a cidade luz.
Após os totalitarismos que mancharam o século XX, com vários milhões de vítimas, os fundamentalismos religiosos e o fundamentalismo islâmico em particular são os grandes inimigos da liberdade e das sociedades democráticas e abertas.
Tive a oportunidade de conhecer verdadeiros muçulmanos na Europa e no Médio Oriente. Aqueles que apreciam a vida na sua diversidade. Aqueles que consideram que a verdadeira jihad é a luta interior de cada ser humano em busca do seu aperfeiçoamento ético e espiritual. Pessoas que estão cheias de vergonha por existirem criminosos que invocam o Corão e o profeta Maomé para legitimar a sua atuação bárbara e covarde.
Neste momento em que choramos a morte bárbara de cerca de duas centenas de concidadãos europeus e as centenas de feridos, muitos dos quais em estado muito grave, não devemos esquecer os cristãos, yazids e outros membros de minorias religiosas que têm sido barbaramente mortos no Médio Oriente no ano findo, bem como os dezenas de milhares que foram expulsos das suas casas e despojados da sua dignidade.
Não devemos esquecer os muçulmanos que têm sido perseguidos e mortos, porque não concordam com uma visão distorcida e retrógrada do Islão.
Não devemos esquecer o património cultural material e imaterial da Humanidade que tem sido sistematicamente destruído. Um património que constitui um legado de milhares de anos da nossa espécie, com as suas grandezas e as suas misérias, que as gerações atuais e futuras não conhecerão. Uma Humanidade sem consciência da sua memória está mais debilitada para compreender o presente e projetar o futuro.
Hoje, mais do que nunca, temos a responsabilidade de defender a liberdade e a dignidade do ser humano como pilares civilizacionais da Humanidade. Temos a responsabilidade de defender a liberdade religiosa e de consciência no seu sentido mais amplo, isto, a liberdade de acreditar em Deus ou não, de seguir uma determinada religião ou nenhuma, bem como mudar de religião.
O Antigo Testamento diz: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. No Novo Testamento, está escrito: "Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é Amor”. No Corão, está enunciado: “Nenhum de vós é um crente, até quererdes para o vosso vizinho aquilo que quereis para vós”; “Se alguém matar uma pessoa seria como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, seria como se ele salvasse a vida de toda a humanidade”. Nas escrituras budistas, um das principais afirmações de Buda é: “Não magoeis os outros com aquilo que vos magoa a vós”.
Um dia, Othman Jebreal, guardião da Mesquita Al-Aqsa, em Jerusalém, um dos locais mais sagrados do Islão, disse: “O perigo não está nos livros sagrados. Está na mente daqueles que os interpretam”.
Há um princípio, a regra de ouro presente e preservada há milênios em diversas tradições religiosas e éticas da humanidade: não faças ao outro o que não queres que te façam a ti. Ou, formulada de modo positivo: faz aos outros o que queres que te façam também a ti! Essa deveria ser a norma inamovível e fundamental para todos os campos da vida, para as famílias e as comunidades, para as nações e religiões.
Não se pode transformar a nossa Terra para melhor sem que se mude a consciência da pessoa humana. Atualmente, é o momento de defender uma mudança individual e coletiva da consciência, em favor de um despertar de nossas forças espirituais e em favor de uma conversão das mentes e dos corações.

Juntos podemos mover montanhas! Juntos podemos ajudar a construir um mundo cujas criaturas não sejam atormentadas pela guerra, torturadas pela fome e pelo medo, para que os nossos filhos e os filhos de nossos filhos possam ter orgulho da sua condição de seres humanos.

O Divino segundo Espinosa



Introdução
Um dia, perguntaram a Albert Einstein pedindo que ele respondesse a uma simples pergunta: “O senhor acredita em Deus?” A resposta foi: “Acredito no Deus de Espinosa, que se revela na harmonia ordeira daquilo que existe, e não num Deus que se interesse pelo destino e pelos atos dos seres humanos”.
Noutra ocasião, Einstein afirmou: “Não sou ateu, e não creio que possa me chamar panteísta. Estamos na situação de uma criancinha que entra em uma imensa biblioteca, repleta de livros em muitas línguas. A criança sabe que alguém deve ter escrito aqueles livros, mas não sabe como. Não compreende as línguas em que foram escritos. Tem uma pálida suspeita de que a disposição dos livros obedece a uma ordem misteriosa, mas não sabe qual ela é. Essa, ao que me parece, é a atitude até mesmo do mais inteligente dos seres humanos diante de Deus. Vemos o Universo, maravilhosamente disposto e obedecendo a certas leis, mas temos apenas uma pálida compreensão delas. A nossa mente limitada capta a força misteriosa que move as constelações. Sou fascinado pelo panteísmo de Espinosa, mas admiro ainda mais a sua contribuição para o pensamento moderno, por ele ter sido o primeiro filósofo a lidar com a alma e o corpo como uma coisa só, e não como duas coisas separadas”.
A conceção do Divino segundo Espinosa assume uma especial relevância para a nossa contemporaneidade. Em última análise, pode se dizer que é uma conceção e um ponto de vista que se aproxima bastante de muitas posições religiosas ou espiritualistas dos nossos tempos.

Breve nota biográfica
Baruch de Espinosa nasceu em 24 de novembro de 1632, em Amesterdão, filho de pais judeus, oriundos de Espanha, que se mudaram para Portugal e daí para a Holanda, por causa das perseguições religiosas. Educado na comunidade judaica de Amesterdão, começou por receber os ensinamentos tradicionais do judaísmo. Desde muito jovem, foi um estudante notável, que deu uma grande preferência à filosofia e à teologia. A sua crítica em relação ao judaísmo ortodoxo levou a um grave conflito com a sua comunidade religiosa de origem. Em 1656 foi expulso da sinagoga de Amesterdão, acusado de blasfémia. O ano de 1656 marcou o início de uma prolongada aventura solitária para Espinosa. Teve de abandonar Amesterdão para sempre, já que todos os judeus ficaram proibidos de lhe dirigir a palavra, incluindo os seus familiares mais próximos. Após a sua condenação, viveu em várias cidades holandesas, dedicando-se ao ofício de polidor de lentes. Apesar de Espinosa ter levado uma vida relativamente solitária, a verdade é que se correspondeu com muitos intelectuais da sua época. Quando a sua fama de grande filósofo ecoava por toda a Europa, teve oportunidade de recusar o convite para lecionar Filosofia na Universidade alemã de Heidelberg, com o argumento de não estar interessado em trocar a sua liberdade e independência de espírito pelas limitações impostas à vida de professor universitário. Quando Espinosa morreu, em 21 de fevereiro de 1677, tinha apenas 44 anos de idade. Deixou uma das mais importantes obras filosóficas de todos os tempos. As suas obras principais foram: Ética Exposta ao Modo Geométrico; Tratado Teológico-Político; Tratado da Reforma do Entendimento; Epistolário.

A Substância Divina
Espinosa apresenta a seguinte definição de Deus: “Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita”.
Substância, conforme Espinosa, é aquilo que existe em si mesmo e é concebido por si mesmo, ou seja, algo inteiramente independente de qualquer outra coisa, tanto no que se refere à sua existência quanto à sua essência.
Deus é uma substância. Logo, Deus é causa de si, eterno e infinito. Mas não só, falta um dado capital: Deus não é apenas uma substância, Deus é a Substância. “Afora Deus, afirma Espinosa, nenhuma substância pode ser dada nem concebida.”
Portanto, Deus define-se como a Substância única, infinita e causa de si, fora do qual nada pode existir nem subsistir. Deus, Ser em si e por si, é imanente a toda a realidade.
A conceção de Espinosa sobre Deus coloca em causa todas as religiões instituídas. Com efeito, a ideia de um Deus pessoal, criador e legislador supremo do Universo, dotado de atributos morais e transcendente ao Universo, não passa de uma ilusão antropomórfica, segundo Espinosa.
Espinosa nega a Criação e substitui-a pela manifestação da Substância Divina que se exprime em modos, nos quais não existe subordinação a um desígnio, sendo possível explicar o Universo sem recurso a causas finais.
Como nenhuma existência em si pode afirmar-se fora de Deus, tudo o que existe na Natureza surge como modificação da Substância Divina.

Os atributos e os modos da Substância Divina 
A Substância Divina engloba uma infinidade de atributos, também eles, que manifestam a essência do Divino. De entre estes atributos, somente dois são acessíveis ao conhecimento humano: o Pensamento e a Extensão. Enquanto o Atributo-Pensamento manifesta Deus idealmente, o Atributo-Extensão mostra Deus materialmente.
Espinosa distingue os atributos divinos dos modos divinos; aos atributos da o nome de Natureza Naturante e aos modos de Natureza Naturada, onde, mesmo que todas as coisas existam em Deus e exista em todas as coisas, não significa que haja uma interligação entre a essência de Deus e a essência dos modos. A essência de Deus é uma potência de causa inesgotável. Dá o nome de Natureza Naturante à substância e seus atributos enquanto atividade infinita que produz a totalidade do real e dá o nome de Natureza Naturada à totalidade dos modos produzidos pelos atributos. Desta forma, Deus não é uma causa que se separa dos efeitos após tê-los produzido, mas é causa imanente e eficiente de seus modos e se expressa por eles e eles a expressam.
Portanto, a natureza naturante é Deus como princípio de todas as coisas, enquanto a natureza naturada é o conjunto das coisas determinadas e finitas que emanam do poder infinito de Deus. A substância é a natureza ativa, ou Deus, e o modo é a natureza passiva, a matéria, ou o Universo. É por isso que Espinosa afirma que as leis universais da natureza e os eternos decretos de Deus são uma e a mesma coisa.

A ética
Espinosa vai tirar da sua noção de substância uma teoria da liberdade humana que se afasta do livre arbítrio: a vontade de Deus e as leis da natureza, sendo uma e a mesma realidade, diversamente expressa, segue-se que todos os fenómenos são o efeito mecânico de leis invariáveis. A visão de Espinosa leva-o afirmar que a vontade de Deus é a soma de todas as causas e leis e que o intelecto de Deus é a soma de todos os pensamentos. É por isso que afirma que o Espírito de Deus é a mentalidade difusa no espaço e no tempo, a consciência difusa que anima o Universo.
O sistema ético preconizado por Espinosa pretende ajudar os seres humanos a dizer sim à vida e também à morte...Com a ampliação das suas perspetivas, esta filosofia pretende acalmar os nossos atormentados egos e reconciliar com as nossas limitações. Pode levar à resignação ou à passividade; mas é também a base indispensável de toda a sabedoria e força.
Espinosa encara a noção da imortalidade de uma forma muito diferente do conceito criado pelas grandes religiões monoteístas: "enquanto partes do todo somos imortais. O espírito humano não pode ser absolutamente destruído com o corpo; parte dele permanece eterna, a parte que concebe as coisas sub specie aeternitatis; quanto mais concebemos desse modo as coisas, mais eterno é o nosso pensamento". Mas distingue eternidade de perpetuidade. A eternidade não pode confundir-se com duração. Tão-pouco, a memória individual pode sobreviver à morte do corpo, porque o espírito só pode lembrar-se quando está no corpo. Também não acredita em recompensas após a morte. Aquele que, em vida, serve a Deus, obtém a recompensa enquanto vive, na serenidade e tranquilidade que andam associadas à felicidade, pois a bem-aventurança não é a recompensa da virtude mas a virtude em si. A imortalidade do pensamento justifica-se porque a verdade é uma criação permanente, constituindo uma aquisição eterna do ser humano.

A crítica espinosista à religião
Na sua obra, Espinosa aborda de forma crítica o estatuto da religião. Ao submeter os textos bíblicos e os textos sagrados em geral a uma crítica histórica e filológica, Espinosa pretende demonstrar que a Bíblia pode e deve ser estudada como qualquer obra antiga, lançando os fundamentos da exegese bíblica moderna. Na sua perspetiva, os autores bíblicos, longe de utilizarem a linguagem da razão, utilizam a da imaginação e da sensibilidade, de modo a incentivar a veneração dos seres humanos em relação a Deus e aos seus mandamentos.
Espinosa critica as religiões instituídas porque estão alimentadas pelo medo e pela supertição, preconizando uma interpretação racional dos textos sagrados. A diferença entre filosofia e religião é que a primeira busca a verdade e a sugunda precisa da obediência para ser realizada.
As críticas que Espinosa faz às religiões instituídas, nomeadamente ao aparato de crenças, cultos e práticas que elas englobam, não põem em causa a existência a relevância de Deus. Um Deus que os seus contemporâneos têm dificuldade em reconhecer como tal.
Contrariamente aos seus contemporâneos que valorizam o antropocentrismo colocando o ser humano como senhor e dono da terra, Espinosa coloca em primeiro lugar o Todo (Deus, Natureza, Substância) e desafia-nos a conhecer a totalidade, descobrindo nela o lugar que nos é devido. Se Deus é identificado com a Natureza nem por isso devemos abdicar da reverência, respeito e beatitude que habitualmente reconhecemos à divindade.
De acordo com Espinosa, a via do conhecimento, o caminho mais elevado da realização humana, procura encontrar Deus nos fenómenos naturais que são a sua expressão mais clara. A filosofia e a ciência (que no século XVII ainda se confundem) ajudam-nos a aceder ao conhecimento de Deus, que se manifesta na ordem e na conexão dos fenómenos naturais.
É este género de conhecimento que permite nos integrar na plenitude divina, participando do amor com que Deus se ama a si mesmo e nos ama.
Contata-se que que o conceito de Deus Natureza é complementado com o de Deus Amor de cuja gloria participamos.

Jesus como modelo ético universal
Se a forma como Espinosa pensou Deus foi polémica, a sua cristología não foi igualmente consensual. 
Espinosa era um conhecedor profundo da Bíblia, podendo ser considerado um dos fundadores da exegese bíblica, na medida em que fez uma análise histórica, filosófica e filológica das Escrituras.
Espinosa enalteceu a figura de Jesus e designou-o como “a boca de Deus”, considerando-o o único homem a quem Deus falou diretamente. Tal facto elevou-o acima dos profetas, incluindo Moisés, conferindo-lhe um estatuto singular.
Com efeito, Espinosa considera que os demais profetas receberam a revelação através da sensibilidade e da imaginação. Pelo contrário, Jesus teve conhecimento dos desígnios de Deus imediatamente, de modo inteiramente espiritual.
Contudo, Espinosa considera Jesus exclusivamente como ser humano, negando-se a aceitar a sua divindade.
Ao abordar a figura de Jesus, Espinosa tem duas finalidades. Por um lado, contribuir para a sua desmitologização, tratando-o como um ser humano e não como Deus. Por outro lado, a sua vida e atuação devem ser entendidas como um modelo ético a seguir por todos os seres humanos.
A sua conceção cristológica aceita a história. De acordo com Espinosa, Jesus é uma personagem cuja historicidade não levanta dúvidas, considerando-o como judeu, que revolucionou a religião na qual foi educado, transformando as leis particulares da Torá numa ética universal. Ao valorizar a sua atuação mediadora e o seu papel como exemplo para a Humanidade no seu todo, Jesus é considerado como o caminho da salvação.
Espinosa preconiza que a salvação pode ser obtida mediante o cumprimento de determinadas regras morais, que estão apresentadas nas Escrituras. De acordo com a sua perspetiva, o homem comum move-se essencialmente por paixões, que geram dissensões e conflitos, daí resultando a obediência às leis da sociedade humana e às regras morais. Neste contexto, o exemplo de Jesus é fundamental, pois quem seguir os seus ensinamentos salva-se.
Espinosa reconhece na mensagem de Jesus uma ética que proporciona estabilidade e harmonia aos seres humanos.
Para Espinosa, Jesus conseguiu conciliar uma dimensão filosófica, dificilmente compreensível pelos seus contemporâneos, e um pensamento ético expresso em ternos éticos e aceitáveis pelo senso comum, sem nunca denunciar as verdades fundamentais. Segundo Espinosa, ele foi a manifestação suprema, mas humana, da Sabedoria Divina. Foi o homem sábio, que mais do que qualquer outro, que se identificou com o Espírito de Deus. Por isso, deve ser considerado como modelo para a Humanidade no seu todo, não perdendo a sua condição humana.
Apesar de utilizar a expressão “Filho de Deus”, Espinosa atribui-lhe um significado diferente do usual, identificando-o com a Sabedoria Divina que se manifesta em todas as coisas.
Recusa o dogma da Encarnação, considerando-o incompreensível. A Ressurreição é analisada por Espinosa com maior cautela, tendo em conta que as aparições de Jesus após a sua morte foram presenciadas fora do círculo dos seus discípulos. Espinosa não duvida da boa-fé dos discípulos nem os acusa de embuste.
Na sua perspetiva, os acontecimentos pós-pascais, nomeadamente a Ressurreição e a Ascensão, foram manifestações da revelação divina, adaptadas a mentes humanas muito presas a explicações corporais.
Assim, defende que a Ressurreição deu-se num plano estritamente espiritual e foi revelada através dos meios ao alcance da compreensão humana dos discípulos.
Na sua reflexão sobre o cristianismo, Espinosa entende que a maioria das suas doutrinas é supérfluas e circunscreve-se ao que entende como essencial: que Deus se mantém em nós e nós nos mantemos em Deus.
Jesus é apresentado como um modelo de justiça e de caridade, chegando a afirmar: “onde as encontramos (a justiça e a caridade), está realmente Cristo; onde faltam, Cristo está ausente”.
Embora não reconhecendo a divindade de Jesus, Espinosa considera Jesus como um modelo ético exemplar e a fidelidade á sua mensagem é considerada como um critério para uma vida eticamente digna, à qual todos os seres humanos devem aspirar.

Conclusão
Do que foi atrás mencionado pode concluir-se que Espinosa atribui a Deus um papel fundamental, mas que o considera de um modo muito peculiar.
Trata-se de um Deus que se manifesta na ordem e na conexão dos fenómenos naturais, desde a mais ínfima partícula ao Universo no seu todo.  
Um dia, Espinosa escreveu um poema sobre Deus que acaba da seguinte forma:

“Não me procures fora!
Não me acharás.
Procura-me dentro… aí é que estou, batendo em ti.”