segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O Cristo e o Iluminado: duas vidas, duas mensagens, uma essência comum


A presente época natalícia é uma altura privilieigiada para abordar a relação entre as vidas e os ensinamentos de duas pessoas que marcaram mais decisavamente o percurso espiritual da História da Humanidade: Jesus, o Cristo, e Gautama, o Buda.  
As grandes tradições espirituais de nosso planeta sempre ensinaram que o mundo em que vivemos é uma ilusão, é maya como dizem os hindus. Com mais razão ainda, poderíamos dizer que as diferenças aparentes entre o budismo e o cristianismo são também uma ilusão. Na verdade, estas duas grandes tradições do Oriente e do Ocidente têm muito mais em comum do que as suas diferenças aparentes sugerem.
Gautama, chamado de Buda ou Iluminado, dedicou-se a ajudar os outros seres humanos a despertar para a espiritualidade e a compaixão. Jesus, o profeta da Palestina, é para os seus seguidores o Cristo ou o Ungido, que inspirado pelo Espírito de Deus, proclamou e  vivenciou uma mensagem de esperança, libertação e amor. Existem muitos pontos de contacto entre estes dois grandes mestres.
Antes de mais, existem normas éticas fundamentais são iguais no budismo e em toda a tradição judaico-cristã-islâmica (não matar, não roubar, não mentir, não praticar a imoralidade sexual, etc.), imperativos éticos de uma atitude humana que podem servir de padrões éticos comuns a todos os seres humanos, uma ética universal.


Tanto Jesus como Gautama foram considerados suspeitos pelos poderes instituídos. Ambos reagiram à agressividade com a serenidade. Ambos proclamaram a paz, a tolerância e não-violência. Ambos protagonizaram movimentos de profunda transformação espiritual numa tripla direção: da forma para o conteúdo, do exterior ritualista para o interior autêntico, do fechamento egocêntrico para a fraternidade compassiva,
Como Gautama, Jesus era um pregador simples e itinerante. Ambos originários de duas famílias reais, preferirem viver junto dos mais vulneráveis das suas sociedades. 
Como Gautama, Jesus não pregou em uma língua sagrada que ninguém entendia (sânscrito e hebraico), mas na linguagem usual (dialeto indo-ariano, aramaico e provavelmente grego), e estabeleceu uma versão escrita e codificada da sua mensagem
Como Gautama, Jesus valorizou a razão e a capacidade de conhecimento das pessoas comuns, não com discursos ou conversas sistemáticas e ponderados, mas com aforismos, contos, parábolas, simples e fácil de entender, retirados diretamente da vida quotidiana, sem estabelecer fórmulas, dogmas ou mistérios.
Como Gautama, Jesus criticou a ganância e a ofuscação pelo poder e pelo controlo das riquezas, a grande tentação, de acordo com os escritos canónicos e apócrifo.
- Como Gautama, Jesus, estava em oposição aos poderes da religião estabelecida que mostraram tão pouca sensibilidade para o sofrimento do povo tradição.
Como Gautama, Jesus teve ao seu redor um grupo de amigos próximos, um círculo de discípulos e muitos outros seguidores.
Mas não é só o comportamento, mas também nos conteúdos da mensagens existe um conjunto de semelhança sbásicaa. 
Como Gautama, Jesus atuou principalmente como professor; a autoridade de ambos foi baseada menos em uma formação sistemática na extraordinária experiência de Realidade Divina.
Como Gautama, Jesus também trouxe uma mensagem de compaixão e de alegria (o dharma, o "evangelho") que exige a conversão dos indivíduos ("entrar na corrente" metanoia) e confiança (shraddha, "fé"). Em suma, ambos deram preferência à ortopraxia em desfavor da ortodoxia.
Como Gautama, Jesus não quis explicar o universo, através de especulações filosóficas profundas e refinadas. Os seus ensinamentos não são revelações misteriosas sobre a natureza do reino de Deus, mas sim orientações para uma transformação existencial .
Como o caminho da Gautama, o caminho de Jesus é um caminho de compromisso entre os extremos do prazer e do ascetismo, entre o hedonismo permissivo e a ascese rigorosa, de forma a permitir uma nova e altruísta dedicação aos outros e à Humanidade no seu todo, com base nos valores da paz, da compaixão e do respeito pela vida. 

domingo, 23 de novembro de 2014

Valentim: o mistico esquecido


Uma das mais brilhantes figuras do Cristianismo primitivo  foi Valentim. Nasceu na província romana de África, provavelmente no território da antiga cidade de Cartago, por volta do ano 100. A sua formação foi feita em Alexandria, então a segunda maior cidade do Império Romano e uma das metrópoles mais avançadas do mundo, onde confluíam pessoas de todas as culturas e de todas as correntes religiosas e filosóficas do Oriente e do Ocidente. Quando alcançou a idade adulta, tomou a opção de residir em Roma. Dotado de uma capacidade espiritual e intelectual notável, rapidamente alcançou um elevado lugar de proeminência na comunidade cristã da capital imperial.
Quando faleceu o bispo de Roma, Higino, no ano 140, Valentim, já então com grande prestígio, foi um dos candidatos à sua sucessão, tendo perdido a eleição por uma escassa margem, tendo sido ultrapassado por Pio, que se tinha destacado na defesa do Cristianismo primitivo contra a prepotência das autoridades romanas. Uma vez eleito, Pio mostrou uma faceta autoritária e dogmática, que não foi bem acolhida por uma grande parte da comunidade cristã de Roma. Valentim faleceu em 161, tendo mantido o seu prestígio junto das comunidades cristãs primitivas. 
Diversos historiadores, entre os quais Gilles Quispel, Jacob Slavenburg, Elaine Pagels , Hans Kung e Marília Fiorello, veem neste acontecimento um ponto de viragem fundamental no percurso histórico do Cristianismo, com profundas repercussões na História da Humanidade em geral.
Será interessante fazer um exercício de História contrafactual. O que teria acontecido se Valentim tivesse sido eleito bispo de Roma? Provavelmente, teríamos um Cristianismo menos dogmático, mais plural, mais centrado na dimensão mística e interior da espiritualidade e consequentemente mais consentâneo com a mensagem de amor, paz e compaixão proclamada e praticada por Jesus. Por outras palavras, uma ortopraxia em vez de uma ortodoxia.
Como místico que era, Valentim enfatizava a centelha no interior de cada ser humano que se despertava pela ressurreição do ser de Cristo no próprio coração e assim abria o caminho para uma vida nova baseada no amor ao Divino e ao próximo.
Valentim pregava que o ser humano era imortal, porque estava a sua parte espiritual estava ligada ao Espirito de Deus.
Mas isto não era válido para todos os seres humanos, Ele dividia os indivíduos em três grandes categorias, de acordo com o seu grau de evolução espiritual. Havia os hílicos, indivíduos materialistas, demasiado focados nas coisas materiais. Em seguida, existiam os psíquicos, que procuravam sinceramente a revelação da fé e que procuravam viver de acordo com as prescrições das comunidades eclesiais. Apesar de buscar a fé de uma forma sincera, não tinham a gnose. Por fim, os pneumáticos, os homens e as mulheres que vivenciavam as verdades eternas através da gnose, e como tal, tinham alcançado a união com o Divino, que vibrava no seu próprio ser.
Contrariamente a alguns pensadores cristãos do seu tempo, inclusive gnósticos, Valentim defendia que o lugar do crente era estar presente no mundo, sem no entanto estar dependente das suas ilusões. 
A conceção de que o ser humano vive num mundo de ilusão, do qual somente o conhecimento da gnose ou autoconhecimento pode libertá-lo, tem fortes analogias com as ideias de duas grandes religiões do Oriente, o Hinduísmo e o Budismo. É importante ter em conta que no século II existiam importantes relações económicas, culturais e inclusive político-diplomáticas entre o Império Romano e o subcontinente indiano.  
Valentim era um indivíduo espiritualmente iluminado. É um dos pensadores cristãos que tinha uma compreensão fundamental da essência da relação entre Deus, o Universo e pessoa humana, bem como da própria natureza de Jesus. 
Seria completamente errado considerar que Valentim diminuiu a importância de Jesus nos seus ensinamentos. A grande devoção e reverência para com Jesus por Valentim são amplamente manifestadas com beleza poética e sublime no Evangelho da Verdade, que na sua forma original, foi escrito por Valentim. Segundo Valentim, Jesus realmente salvador, mas o termo deve ser entendido na aceção da palavra grega original. Esta palavra grega é "soter", que significa curador ou doador da saúde. 
O Cristianismo gnóstico considera que o mundo e a Humanidade tem como grande enfermidade a ignorância, mais concretamente a ignorância, mais concretamente a ignorância espiritual. 
O papel dos mensageiros espirituais, entre os Jesus tinha um lugar de destaque, era curar da Humanidade da sua ignorância, através da gnose ou conhecimento espiritual. 
Na sua mensagem e sobretudo na sua vida, Valentim manifesta uma espiritualidade que merece ser conhecida pelos homens e pelas mulheres dos nossos tempos. 

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A Verdade e a Realidade: um breve reflexão


A pessoa humana, analisando o Universo de que é simplesmente uma partícula, observa que todas as coisas evoluem. Observa a ação e a reação, o fluxo e o refluxo, a ordem e a entropia, a criação e a destruição, o nascimento e a morte. Nada é permanente, tudo se transforma. Progressivamente, foi compreendendo que essas coisas mutáveis são manifestações da Realidade Última. 
Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias, encontra-se nos diversos povos uma perceção desta Realidade Última presente no curso dos acontecimentos cósmicos.
Perceção e conhecimento que impregnam as vidas dos seres humanos de um profundo sentido espiritual.
Por sua vez, as religiões, a filosofia e a ciência, ligadas ao progresso da cultura humana, procuram responder às mesmas questões com noções mais apuradas e uma linguagem mais elaborada.
Os pensadores de todas as sociedades e de todas as épocas, de diversas correntes filosóficas e religiosas, compreenderam a necessidade de ser admitida a existência desta Realidade Última. Os seres humanos deram a esta Realidade muitas denominações. Muitos designaram-na sob o termo Deus ou Divindade (sob diversos títulos). Outros chamaram-na a Eterna e Infinita Energia. Outros ainda deram-lhe simplesmente o nome de Absoluto. Mas todos reconheceram a sua existência.
O Absoluto Divino, em si mesmo, é incognoscível. O mistério intrínseco do Absoluto Divino está para além das possibilidades cognitivas da pessoa humana. As diversas tradições religiosas e filosóficas não conseguem apreender ou oferecer uma representação pleno do mistério ou do ser íntimo de Deus. 
Neste sentido, podemos estabelecer uma distinção entre a "Realidade em si", inacessível aos seres humanos, e a "Realidade manifesta", que é vivenciada nas diversas culturas humanas. 
Às diversas tradições religiosas e filosóficas corresponderiam, assim, diferentes respostas à Realidade. A “Realidade em si” não se enquadra em nenhuma das categorias presentes nas tradições judaica, cristã, muçulmana, budista ou hindu, nem mesmo em qualquer outra manifestação da espiritualidade humana. Ela está para além de qualquer de suas manifestações na consciência humana.
Neste sentido, as afirmações das diversas tradições religiosas refletem experiências que constituem modos diferentes pelos quais a Realidade Última atuou sobre a vida humana. 
Relativamente à questão da verdade, urge passar de um paradigma exclusivista para um paradigma pluralista, o que corresponde a uma verdadeira revolução coperniciana da consciência humana.
O exclusivismo é uma conceção ptolemaica, geocêntrica, ou seja, um modelo no qual uma determinada religião ou filosofia está no centro, enquanto todas as outras correntes religiosas e filosóficas se situam em relação a esse mesmo centro.
Por seu turno, o pluralismo é coperniciano, pode parte de um modelo no qual o Absoluto ou Deus está no centro, com as diversas tradições filosóficas e religiosas a girar em torno desse mesmo centro.
A revolução coperniciana que marca a passagem do exclusivismo para o pluralismo é um grande desafio para a consciência humana. Talvez seja um dos maiores desafios da História na esfera espiritual, porque pressupõe uma desconstrução do pensamento humano no seu todo e a concretização de um novo paradigma.


A adoção de um paradigma pluralista da espiritualidade coloca a seguinte situação: Como encontrar um caminho que permita aos crentes de uma determinada religião aceitar a verdade das respetivas outras religiões sem renunciar à verdade da própria religião e com isso à sua própria identidade?
Considerando que existe uma ética universal comum, baseada no respeito pela dignidade da pessoa humana, o filósofo e teólogo Hans ng analisa as religiões, positiva e negativamente, de acordo com esses padrões éticos universais.
Com efeito, as diversas conceções religiosas e filosóficas partilham o princípio de que todo o ser humano, sem distinção idade, sexo, raça, cor, capacidade física ou intelectual, língua, religião, convicção política, origem nacional ou social – é dotado de uma dignidade fundamental e intocável.
Positivamente: a religião é boa e verdadeira na medida em que serve à humanidade, na medida em que, nas suas doutrinas de fé, de ética, nos seus ritos e instituições, promove a dignidade humana, o sentido e o sentimento de valor das pessoas.
Negativamente: a religião é falsa e ruim, na medida em que difunde a desumanidade, na medida em que, em suas doutrinas de fé e ética, nos seus ritos e suas instituições, restringe as pessoas na sua identidade humana, na sua busca de sentido, dificultando, assim, uma existência digna e com sentido.
Todas as experiências históricas demonstram que não se pode mudar o nosso planeta sem que se chegue a mudanças de consciência.
Portanto, mais do que nunca, somos chamados a ser testemunhas ativas desta Regra de Ouro presente e preservada há milênios nas diversas tradições religiosas, filosóficas e éticas da Humanidade: faz aos outros o que queres que te façam também a ti!
Como seres dotados de razão e de consciência, devemos agir uns para com os outros em espirito de fraternidade, compaixão e amor.

 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A purificação do Templo


Os quatro Evangelhos canónicos (Marcos, Mateus, Lucas e João) fazem referência à intervenção brusca de Jesus no Templo de Jerusalém, quando este promoveu a purificação do Átrio dos Gentios, que tinha sido transformado em local de comércio e de transações financeiras.
Este comércio constituía uma mais valia para a cidade e sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados do Templo.
A cena situa-se no Templo majestoso, construído pelo rei Herodes, o Grande, para demonstrar as suas boas intenções para com o culto ao Deus de Israel e consequentemente conquistar a simpatia do povo judeu.
A construção do Templo iniciou-se em 19 A.E.C. e ficou essencialmente pronta no ano 9 E.C., embora os trabalhos só tivessem sido dados por concluídos em 63. No tempo de Jesus, efetivamente, o Templo estava a ser construído há 46 anos e ainda não estava terminado, conforme a observação que os dirigentes judeus fizeram ao jovem profeta.
A purificação do Templo por Jesus foi um gesto profundamente audacioso. Atacar o templo era atacar os fundamentos da vida religiosa, social, económica e política de Israel.
A magnificência do Templo, reconstruído após o exílio em Babilónia, contrastava com a pobreza da maioria esmagadora do povo, documentada nos Evangelhos canónicos e noutras fontes históricas alusivas àquela época.
Se Jesus partilhava a prática de ir ao Templo, sobretudo nas principais festas do calendário religioso do judaísmo, já o incomodava a sua instrumentalização por uma religião que controlava o acesso a Deus, que sustentava a força dos poderes instituídos, que marginalizava os mais pobres e excluía os mais vulneráveis.
Os profetas de Israel, em diversas situações, tinham criticado o culto sacrificial que Israel oferecia a Deus, considerando-o como um conjunto de ritos vazios e estéreis, dado que não expressavam verdadeiramente o amor a Deus; tinham, inclusive, denunciado a relação do culto com a injustiça e a exploração dos pobres.
As considerações proféticas acabaram por consolidar a ideia de que a chegada dos tempos messiânicos implicaria a purificação do culto prestado a Deus, Nesta linha, o profeta Zacarias chegou a ligar explicitamente o “dia do Senhor” (o dia em que Deus vai intervir na história e construir um mundo novo, através do Messias) com a purificação do culto e a eliminação dos comerciantes que desenvolviam a sua atividade comercial no Templo.
O gesto que o Evangelho deste domingo nos relata deve entender-se neste enquadramento. Quando Jesus pega no chicote de cordas, expulsa do Templo os vendedores de ovelhas, de bois e de pombas, deita por terra os trocos dos banqueiros e derruba as mesas dos cambistas, está a revelar-se como o Messias anunciado pelos profetas e a anunciar que chegaram os novos tempos, os tempos messiânicos.
No entanto, Jesus vai bem mais longe do que os profetas do Antigo Testamento. Com a sua mensagem e sobretudo a sua prática, Jesus proclama uma nova forma de relação da pessoa humana com Deus, doravante encarado como Fonte da Vida e do Amor.
Jesus anuncia que “Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em
verdade". Noutra passagem, afirma: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles”.
Construir templos não é o objetivo principal do Reino de Deus. Claro que precisamos de casas de encontro, de oração, de partilha, de comunhão e de acolhimento.
Mas o mais importante são as pessoas animadas pelo amor de Deus e a vontade de construir um mundo novo no qual as relações entre os seres humanos sejam enquadradas de acordo com a regra de ouro presente e preservada há milênios em muitas tradições religiosas e éticas da humanidade: não faz a outrem o que não queres que te façam a ti. Ou, formulada de modo positivo: faz aos outros o que queres que te façam também a ti! Essa regra deveria ser a norma fundamental  para todos os campos da vida, para as famílias e as comunidades, para as etnias, nações e religiões.
Os edifícios, mesmo os mais belos, não subsistirão à erosão do tempo. Mas o amor e a fraternidade permanecerão. 

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O Bar Mitzva de Jesus


Um dos episódios mais representados da infância de Jesus é a sua presença com os doutores da Lei judaica, no Templo de Jerusalém. A sua importância deriva do facto de ser o último evento da vida de Jesus narrado pelos Evangelhos canónicos, antes do batismo e do início do sua vida pública.
O episódio é descrito no Evangelho de Lucas. O jovem Jesus, então com doze anos de idade, acompanha Maria, José e o resto da sua família numa peregrinação a Jerusalém, por ocasião da Páscoa, a principal festa religiosa do judaísmo.
No dia regresso, permaneceu em Jerusalém e os seus pais, convictos de que ele estava com familiares, iniciaram a jornada de retorno à Galileia.
Quando se aperceberam da sua ausência na comitiva familiar, Maria e José regressaram à Cidade Santa, encontrando Jesus após três dias de buscas. Jesus foi encontrado no Templo, debatendo com os doutores da Lei judaica, que ficaram admirados pela sua inteligência e sabedoria.
Para além do Evangelho de Lucas, a história é igualmente mencionada pela literatura apócrifa, nomeadamente pelo Evangelho da Infância de Tomé.
O texto é bastante claro. Jesus faz perguntas aos doutores da lei, estes respondem-lhe, ele escuta-os. Por sua vez, eles fazem-lhe perguntas e ele responde-lhes inteligentemente.
Como imaginar que os doutores da Lei, todos eles profundos conhecedores da Tora e das demais Escrituras, e inclusive no caso de alguns deles, dos mistérios esotéricos da Cabala, como admitir que esses homens sábios se rebaixaram para instruir-se humildemente com um menino de doze anos.


Com toda a probabilidade, o episódio descrito pelo evangelista Lucas corresponde ao Bar Mitzva de Jesus. De acordo com o Evangelho de Lucas, Jesus, nesse episódio, contava com doze anos de idade. No judaísmo, quando um homem alcança, aos treze anos, a maioridade religiosa, adquire, por esse mesmo feito, a maioridade jurídica.
O Bar Mitzva é a designação dada à cerimónia que marca a passagem para a maioridade religiosa no judaísmo. Quando um judeu atinge a sua maioridade, aos treze anos, passa a ser responsável pelos seus atos, de acordo com a Lei judaica. Nessa altura, diz-se que o adolescente passa a ser Bar Mitzva (Filho do mandamento). Além de ser considerado como um jovem adulto, está qualificado para que possa ler e comentar as Escrituras na sinagoga local.
Atualmente, o Bar Mitzva é uma cerimónia com um conjunto de um conjunto de formas rituais. Mas é provável que nos tempos de Jesus, não se praticasse para tal fim a não ser um simples exame, ante os doutores da lei, que tinha como objeto verificar se o novo fiel estava capacitado para assumir todas as suas novas responsabilidades no marco da Lei religiosa, que regia todos os aspetos da vida da sociedade em Israel.
Portanto, o episódio que foi descrito como “Jesus ensinando aos doutores da Lei” foi o seu exame de maioridade religiosa e civil.
E quase com toda probabilidade foi devido ao fato de sua maioridade irrevogável, por isso José e Maria, muito ocupados com os seus outros filhos menores, fizeram a caminho de volta sem preocupar-se demasiado com o seu filho primogénito, que legalmente já estava emancipado.
Este episódio mostra igualmente que Jesus e a sua família estavam perfeitamente integrados nas tradições e valores do judaísmo.
O episódio foi muito representado na arte cristã. Nas primeiras representações, datadas da Idade Média, Jesus aparece geralmente no centro, sentando numa plataforma elevada e rodeado pelos anciãos, fazendo lembrar as palestras dos mestres nas universidades. Do Renascimento em diante, Jesus aparece rodeado pelos sábios que gesticulam, sugerindo a existência de um debate com o jovem mestre. 

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A divinização da Humanidade e a mensagem de Jesus




A divinização da Humanidade é um tema que está presente na generalidade das correntes esotéricas, desde as mais antigas, nomeadamente as religiões mistéricas e as filosofias clássicas, às da modernidade, designadamente as diversas ordens iniciáticas.
Apesar de menosprezada no Cristianismo ocidental, tanto no Catolicismo como nos diversos ramos do Protestantismo, a doutrina da divinização da Humanidade desempenha igualmente um lugar fundamental no Cristianismo oriental. 
Com efeito, o Cristianismo oriental sempre enfatizou a grandeza da pessoa humana como condição do seu progresso em direção ao seu destino divino.  
A doutrina da divinização da Humanidade baseia-se nos textos das Escrituras bíblicas que constituem o fundamento basilar do Cristianismo.
No primeiro livro do Antigo Testamento, o Genésis, está escrito: “E disse Deus: Façamos o Homem à nossa imagem, à nossa semelhança".
Seguindo esta passagem bíblica, os cristãos primitivos, sobretudo os gnósticos, tiraram daí todas as consequências. Existe na Humanidade, apesar da Queda, uma parcela espiritual que provém do mundo superior e que aspira a ser purificada a fim de regressar à sua fonte primordial, que é Deus.  .
Na perspetiva dos cristãos gnósticos, a finalidade da salvação era a participação da pessoa humana na natureza divina. .
Seguindo esta perspetiva, é responsabilidade do Homem readquirir essa dignidade espiritual, que ele possuía na Origem e que perdeu com a Queda.
Segundo o gnosticismo cristão, diversos mediadores ou mensageiros desceram à Terra para transmitir a Gnose à Humanidade, de modo a assegurar a sua regeneração espirutual. O principal mediador é Jesus, o Cristo, que transmitiu a Gnose aos seus discípulos..
Para as correntes que valorizam a dimensão esotérica do Cristianismo, tanto aa antigas como as contemporâneas, a divinização da Humanidade é uma condição fundamental para a manifestação do Reino de Deus. 
Com efeito, há diversas coisas a dizer sobre o caminho que Jesus proclamou e praticou, uma vez que os seus ensinamentos nem sempre tem sido interpretados à luz de uma consciência espiritual mais elevada.  
Entrar no Reino de Deus não significa esperar pela morte e depois juntar-se a Deus. Pelo contrário, é um acontecimento interno vivido no momento que a natureza humana se transforma em algo mais elevado.
A mensagem de Jesus, centrada na proclamação do Reino de Deus, refere-se a um mundo transformado que depende de cada ser humano que busca a sua transformação interior, de acordo com a sua condição de filho de Deus.
Conforme Jesus refere no Evangelho de Tomé:“O Reino dentro de vós e fora de vós. Quando vos chegueis a conhecer a vós próprios, então sereis conhecidos e sabereis que vós sois os filhos do Pai vivente. Mas se vós não vos conhecerdes, então ficareis na pobreza e sereis a pobreza”. 
Em todas as grandes tradições de sabedoria humana, do Ocidente e do Oriente, a realidade é dividida em três niveis: o material, o espiritual e o divino.
O mundo material e o domínio das coisas físicas. Este nível de realidade é dominado pelas limitações do espaço e do tempo e pelo desejo dos bens materiais, o que nos coloca-nos ao serviço de ídolos ou falsas divindades, que Jesus simbolizou na figura de Mamona.
O mundo espiritual, onde tudo o que se aplica ao mundo material não é válido. Aí, os acontecimentos são governados por leis espirituais e as limitações do espaço e do tempo não existem. Nos Evangelhos, Jesus utliiliza a imagem do banquete para descrever esse mundo de felicidade, de amor e de alegria sem fim que Deus quer oferecer a todos os seus filhos.
Por último, Deus, ou o Absoluto, a origem, da qual nasceu a realidade. Transcende o mundo material, mas por ser infinito e ilimitado, também transcende o mundo espiritual.  
Estes três níveis interpenetram-se. O mundo material, o mundo espiritual e o próprio Deus estão todos presentes dentro de nos e fora de nos. 
Acreditar que só existimos no mundo material é urn enorme erro, um erro que os vários mestres espirituais e o próprio Jesus tem corrigido. Ele ofereceu a salvação, o que abre as portas as duas dimensões da vida que estão em falta, o mundo espiritual e o Absoluto Divino.
A menagem de salvação apresentada por Jesus tem uma vantagem pratica para a nossa vida. Como não somos perfeitos, mas somos portadores de uma centelha espiritual, a vida transforma-se num misto de bem e mal, prazer e sofrimento. Nós aspiramos à perfeição e ao bem, mas isso só pode acontecer se o Reino de Deus descer a Terra, que é precisamente o objetivo de Jesus.
Embora os três níveis de realidade estejam sempre presentes, o ser humano tem de se elevar a uma consciência espiritual superior para englo­bar os três mundos em simultâneo.
Quando Jesus disse: “Eu e o Pai somos um”, ele demonstrou que, para ele, era natural ver tudo, Deus e o Universo, ao mesmo tempo.
Analisando os evangelhos canónicos e os textos apócrifos mais importantes, como por exemplo o Evangelho de Tomé, constata-se que Jesus vê Deus como uma luz pura que emana em todos os recantos do Universo. 
Por isso, Jesus proclamou no Sermão da Montanha:“Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte, nem se acende a candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas sim em cima do candelabro, e assm alumia a todos os que estão em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu.” 
Tal como Buda e outros mestres que alcançaram a iluminação divina, Jesus queria que as seus seguidores e todos os seres humanos em geral se tornassem igualmente iluminados.
De facto, a forma por excelência de seguir os ensinamentos de Jesus é procurar atingir o estado de consciência dele. Alcançar a consciência de Cristo significa percorrer o mesmo caminho que ele percorreu para alcançar a iluminação e a união com Deus, a Fonte da Existência, da Vida e do Amor.


Prisciliano: um reformador do Cristianismo na Antiguidade Tardia


Prisciliano é uma das personalidades mais significativas da história religiosa da Península Ibérica,.Viveu na época denominada pela Antiguidade Tardia, assim designada por historiadores e outros eruditos para descrever o intervalo entre a Antiguidade clássica greco-romana e a Idade Média, na Europa e no mundo mediterrânico, geralmente entre o declínio do Império Romano cerca do ano 300 e o fim do Imperio Romano do Ocidente em 476, que marcou a consolidação dos reinos germânicos na Europa e do império Romano do Oriente, também designado como Império Bizantino. 
De acordo as fontes históricas existentes, nasceu na aldeia de Iria Flavia, que se encontra hoje ligada à vila de Padrón, numa Galiza que, na altura, pertencia à província romana da Galécia. cujo território incorporava o Norte de Portugal e partes atuais de Leão e Astúrias.
Liderou uma corrente do Cristianismo, com características reformadoras, ascéticas e inclusivamente gnósticas, tendo sido o primeiro heterodoxo a ser condenado à morte pela hierarquia eclesiástica, em articulação com o poder político então vigente.
Autores diversos como Agostinho da Silva, Jaime de Cortesão, Miguel de Unamuno e Teixeira de Pascoaes atribuem ao priscilianismo uma relevância fundamental na espiritualidade característica dos povos ibéricos.
De acordo com alguns autores, é Prisciliano quem se encontra sepultado em Compostela, e não São Tiago, que nunca saiu da Palestina, de acordo com as Escrituras.
Ele considerava-se como um asceta que renunciara às tentações mundanas e como tal, buscava a proximidade com o Divino através de uma ascese rigorosa. A principal atividade utlizada nesta ascese era a leitura e a interpretação das Escrituras, incluindo os documentos apócrifos, que ele considerava válidos, com o fundamento de que eram igualmente resultado de uma revelação divina. Na sua perspetiva, o cânone do Novo Testamento tinha sido uma decisão humana.
Defendia que a alma se encontrava aprisionada num cárcere material, o corpo, e que era imperiosa promover a sua libertação, de modo que pudesse regressar ao plano divino.
Enfatizando a unidade absoluta de Deus, mostrava reservas em relação à doutrina da Trindade, proclamada pelo Concílio de Niceia, em 325, que vê Deus uma unidade composta pelo Pai, Filho e Espírito Santo.
Prisciliano contestava o modelo hierarquizado de Igreja já vigente na sua época, que tinha o apoio ativo do poder político imperial, que pretendia deste modo instrumentalizar o Cristianismo. Com efeito, defendia um modelo de Igreja próximo daquele que tinha promovido pelos primeiros discípulos de Jesus, baseado na prática da ascese e na leitura e interpretação dos textos sagrados, tanto dos canónicos como dos apócrifos. Defendia a igualdade entre homens e mulheres. Questionava a exclusividade dos bispos e dos demais ministros ordenados na transmissão dos ensinamentos espirituais, considerando que Deus pode escolher crentes, sejam ordenados ou não, e conferir-lhes a capacidade de pregarem e interpretarem as Escrituras. Neste sentido, o Espírito de Deus pode conceder a qualquer crente a luz que o permite compreender a mensagem das Escrituras. Na interpretação das Escrituras, Prisciliano enfatizava a dimensão simbólica em detrimento do literalismo.
Proclamando uma doutrina que visava o conhecimento de Deus através do autoconhecimento de cada um, as propostas de Prisciliano defendiam igualmente a pobreza voluntária, a abstinência do álcool e da carne, o exercício da esmola, a abolição da escravatura e a igualdade entre homens e mulheres. Recomendando o celibato, Prisciliano não proibia, no entanto, o casamento de clérigos e monges, reconhecendo que a sexualidade consciente também era um valor que podia ser sacralizado. É nessa linha de pensamento que Prisciliano, escandalizando os seus contemporâneos, abre as portas dos templos às mulheres, como participantes integrais e ativas na liturgia e ousa afirmar que as almas humanas são, em essência, da mesma substância que Deus e podem transmigrar-se.
As reuniões das comunidades influenciadas pela mensagem de Prisciliano eram abertas à participação das pessoas que o desejassem, independentemente do sexo ou da condição social.
Essas reuniões eram frequentemente noturnas, tendo lugar nas montanhas, recordando os cultos estelares e de natureza, de origem celta. Nessas reuniões, a dança desempenhava um papel ritual importante.
Para além da Península Ibérica, a sua pregação teve um forte impacto no sul da atual França, lançando o germe de futuros movimentos heterodoxos, nomeadamente o Catarismo.
As deias de Prisciliano tiveram um forte influências em todos os estratos da sociedade, desde escravos à aristocracia, o que contribuiu para desencadear a reação dos setores mais conservadores da ortodoxia, que não hesitarem em aliar-se ao poder político, para promover a sua condenação à morte, um procedente de mau agoiro que iria marcar toda a história do Cristianismo e estabelecia os fundamentos daquilo que, séculos mais tarde, iria ser a Inquisição.
Como homem livre e cristão, Prisciliano valorizava acima de tudo o autoconhecimento como via privilegiada do encontro da pessoa humana com o Divino, apelando à experiência individual, que não podia ser substituída por nenhuma escritura, por mais sagrada que fosse, pois continuava a ser "letra" e o objetivo era a "consciência"; ou seja, seria essencial distinguir entre a letra que mata e o espírito que vivifica e renova.
Prisciliano foi o auto de diversas obras teológicas, mais concretamente as seguintes:
- Livro apologético (Liber Apologeticus), defesa do Sínodo de Saragoza;
- Livro ao Bispo Dámaso (liber ad Damasum Episcopum), carta ao Papa;
- Sobre a fé e os apócrifos (De fide et apocryphis);
- Tratado da páscoa (Tractatus paschalis);
- Tratado do êxodo (tractatus Exodi);
- Tratado dos primeiros salmos ( Tractatus Psalmi tertil);
- Tratado para o povo I – II (Tractatus ad populum – I – II);
- Bênção ao povo (Benedictio super populum).
Prisciliano compôs igualmente hinos para ajudar na difusão da sua mensagem. Um dos hinos mais belos cuja autoria é-lhe atribuída é o célebre "Hino a Jesus Cristo", que contém um apelo aos crentes para que não se fixassem nas palavras, mas que desenvolvessem a sua intuição espiritual.
“Quero desamarrar e quero ser desamarrado
Quero salvar e quero ser salvo
Quero ser engendrado
Quero cantar, cantai todos
Quero chorar, batei nos vossos peitos
Quero enfeitar e quero ser enfreitado
Sou lâmpada para ti, que me vês
Sou porta para ti, que chamas a ela
Tu vês o que faço. Não o menciones
A palavra enganou a todos, mas eu não fui totalmente enganado.”