quarta-feira, 30 de abril de 2014

O Jesus de Pasolini

 
 
 

No primeiro trimestre de 2014, foi estreado o filme The Son of God, dirigido pelo realizador norte-americano Christopher Spencer, que conta com a interpretação do ator português Diogo Morgado como Jesus.
Enquanto o filme está a ser apresentado nas salas de cinema, vale a pena analisar outros filmes sobre Jesus, que tem sido uma tema privilegiado na história da Sétima Arte.
Um dos filmes mais brilhantes sobre a figura de Jesus foi o filme O Evangelho Segundo São Mateus, dirigido pelo realizador italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975).
Pasolini era assumidamente homossexual, ateu e marxista, sendo uma das personalidades mais amadas e odiadas da Itália do seu tempo.
Influenciado pelo neo-realismo, Pasolini escolheu o Evangelho de Mateus porque considera-lo o que mais transmitia um testemunho mais autêntico da vida e da mensagem de Jesus. Na sua perspetiva, “o Evangelho de João é demasiado místico, o de Marcos é muito vulgar e o de Lucas demasiado sentimental”.
O Jesus deste filme não é como os de muitos filmes norte-americanos e europeus (representado sempre na figura de um homem loiro e com olhos azuis, como se na Palestina de há dois mil anos fosse fácil encontrar alguém com tais características). Pasolini escolheu um ator amador (ele gostava de trabalhar com amadores), alto, moreno, com sobrancelhas grossas para fazer o papel de protagonista.
Pasolini tinha uma forte admiração pela figura de Jesus que era um mestre espiritual que defendia uma mensagem de libertação integral da Humanidade, estava sempre ao lado dos mais humildes e indefesos e enfrentava os poderes terrenos que oprimiam a pessoa humana, até às últimas consequências.
Um dia, Pasolini afirmou: “Em palavras simples: eu não acredito que Cristo seja Filho de Deus, porque não sou crente – pelo menos conscientemente. Mas acredito que Cristo seja divino: isto é, creio que nele a humanidade é uma coisa tão elevada, tão rigorosa e ideal que ultrapassa os termos comuns da humanidade. Por isso falo em ‘poesia’: instrumento irracional para exprimir este meu sentimento irracional por Cristo”.
Provavelmente, foi esta a razão que levou Pasolini a aceitar o convite de João XXIII, um papa que promoveu o Concílio Vaticano II e a abertura da Igreja Católica em relação ao mundo contemporâneo em diversas áreas, inclusive na área cultural e artística.
Filmado em algumas terras áridas da região de Basilicata, no sul de Itália a fotografia é bela, com olhares que expressam os mais diversos sentimentos humanos, o filme tem uma banda sonora que toca a alma, conjugando música clássica (Bach e Mozart) e blues. 
Pasolini conseguiu transformar a vida de Jesus em poesia. O Jesus que ele retrata é profusamente humano, dotado de doçura e serenidade, mas também de paixão e revolta. Um Jesus com um olhar profundo. Um ser humano com um elevado sentido ético, profundamente empenhado na concretização do projeto libertador do Reino de Deus, a grande causa da sua vida.
Daí a relevância que Pasolini dá aos grandes discursos de Jesus, e em particular o Sermão da Montanha, que apresenta o ensinamento ético e religioso do grande profeta da Palestina.
O filme realizador italiano foi extremamente bem recebido pela crítica. Venceu dois prémios no Festival de Veneza, incluindo uma menção especial do Júri, recebeu o prémio OCIC (Office Catholique International du Cinema) e teve três indicações para os Óscares. Além disso, foi muito bem acolhido pelo público, que continua a aclamá-lo ainda hoje.
Pasolini legou uma obra importante para a História do Cinema, e que continua a ser essencial para se compreender a vida e a mensagem de Jesus, que o cineasta tornou mais próximo dos seres humanos e das suas aspirações mais nobres. Como disse o crítico de cinema Roger Ebert (1942-2013): O filme de Pasolini diz-nos que Jesus foi um radical e cujos ensinamentos, se levados a sério, contradizem os valores da maioria das sociedades humanas desde então”.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Abril. 40 anos depois


Em 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas derrubou o regime autoritário do Estado Novo e abriu caminho para a instauração da III República.
Poucos tinham imaginado que uma ditadura de quarenta e oito anos, que tinha feito da censura e da polícia política os seus pilares estruturantes, pudesse terminar sem violência. Mas foi o que aconteceu. Mal sabendo do golpe militar, a “rua,” tão temida pelo Estado Novo, acorrera em massa, vitoriando os miliares que tinham promovido a ação libertadora. O que inicialmente parecia um mero golpe de Estado transformou-se numa ampla revolução democrática e popular, que se estendeu a todos os pontos do País, bem como às mais remotas parcelas do então império colonial.
Durante dois anos, os portugueses viveram um dos períodos revolucionários mais intensos da História mundial do século XX. Contrariamente ao que aconteceu noutros países, o processo revolucionário conduziu à implantação de uma democracia pluralista de inspiração europeia e ocidental, impregnada de um forte carácter progressista nos domínios político, económico e social. 
Nas últimas quatro décadas, o País modificou-se radicalmente. Foi promovida a descolonização dos territórios ultramarinos. Realizou-se a adesão às Comunidades Europeias, atual União Europeia. A agricultura de subsistência entrou em declínio fatal. A indústria e sobretudo os serviços cresceram. Proclamou-se a plena igualdade de direitos entre os dois sexos. As áreas urbanas, nomeadamente as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, passaram a concentrar a maioria da população. A mobilidade social aumentou. Filhos de operários obtêm licenciaturas, descendentes de agricultores a trabalhar como empresários ou gestores, etc. A mortalidade infantil, um dos principais indicadores da saúde pública, é uma das mais baixas do mundo. A democracia política foi-se consolidando, com a realização de eleições livres e a salvaguarda das liberdades fundamentais. Depois de uma tutela centralista de meio século, o poder local desvendou progressivamente rumos de autonomia, o que contribuiu para a melhoria profunda das condições de vida das comunidades locais, nos domínios económico, social, cultural e ambiental.
Feito de algum modo o balanço dos últimos quarenta anos da história nacional, impõe-se perspetivar os rumos futuros da democracia portuguesa.
A consolidação e o aprofundamento da democracia exige que as suas formas institucionais, nas vertentes representativa e participativa, estejam em consonância com o percurso das transformação estruturais da sociedade.
A definição e a implementação das reformas necessárias ao aprofundamento da democracia exigem dos decisores políticos e dos cidadãos em geral ousadia, coragem e inovação.
A democracia não é algo estático, mas um processo em constante desenvolvimento. Todos os cidadãos, independentemente das suas preferências políticas, devem contribuir para o aprofundamento e o desenvolvimento da democracia, pois não há democracia sem uma cidadania ativa, interveniente, esclarecida e participativa. É talvez esta a grande lição da revolução generosa e pacífica que hoje celebramos.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

A nação do arco-iris

 
No dia 24 de abril de 1994, realizaram-se as primeiras eleições livres, democráticas e multirraciais na República de África do Sul.
Este acontecimento marcou o fim do regime do apartheid, um sistema político autocrático baseado na institucionalização da segregação racial.
Embora a discriminação racial fosse um fenómeno já presente na época colonial, a situação agravou-se com a independência da África do Sul em relação ao Império Britânico, proclamada em 1910, e sobretudo com a ascensão ao poder do Partido Nacional, em 1948, uma formação política baseada na comunidade bóer ou afrikaner, de origem holandesa.
A partir de 1948, foram aprovadas diversas medidas legislativas, políticas e administrativas que implementaram o regime de apartheid. Os sul-africanos foram divididos em quatro grandes grupos raciais: “brancos”, “negros”, “de cor” e “indianos”. Os direitos de cidadania das populações não brancas foram sistematicamente restringidos e negados.
A transição do apartheid para a democracia está indissociavelmente ligada a Nelson Mandela, que constitui um dos estadistas mais prestigiados do século XX e do início do século XXI.
Contudo, o fim deste regime não foi o resultado da atuação isolada de um homem, mas sim o resultado de uma luta de milhões de sul-africanos pertencentes a diversas etnias, convicções político-ideológicas e confissões religiosas, que partilhavam o sonho de uma sociedade baseada na dignidade da pessoa humana, tendo sido apoiadas por vários milhões de pessoas um pouco por todo o mundo.
Ao sair da cadeia, naquela manhã de céu límpido, em Franschhoek, no Cabo Ocidental, no dia 11 de fevereiro de 1990, Mandela foi ao encontro de um país envenenado pelo racismo e pela autocracia, é certo, mas, ao mesmo tempo, muito bem preparado para assumir o seu novo papel de potência democrática a nível internacional.
A resistência contra o apartheid aperfeiçoou o país. Os longos anos de combate contra o regime racista explicam a elevada consciência política, organização e combatividade da atual sociedade sul-africana.
Há duas décadas, muitos auguravam para a África do Sul um cenário sinistro de anarquia e de guerra civil fratricida.
Hoje, a África do Sul, apesar de todos os problemas sociais, económicos e inclusive políticos, é uma democracia pluralista estabilizada, dispõe de uma economia moderna e sofisticada, pertence aos G20, o grupo dos vinte países mais poderosos do mundo e é uma das sociedades com maior diversidade étnica e cultural do planeta.
Portanto a África do Sul, mau todas as adversidades afirmou-se como uma nação arco-íris,  honrando as sábias palavras de Nelson Mandela: Cultivei o ideal de uma sociedade democrática e livre na qual todos vivam juntos em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e que espero alcançar. Mas se for preciso, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer.”

domingo, 13 de abril de 2014

Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?


Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”. Constitui uma das declarações mais conhecidas e aparentemente mais desconcertantes de Jesus.
Com efeito, os Evangelhos de Marcos e de Mateus referem este grito de Jesus na cruz, pouco antes de morrer.
Mutos teólogos interpretam este grito no sentido literal. De acordo com esta interpretação, Jesus, identificado com os pecadores, aceita o castigo que Deus lhes destinou e assume o silêncio dos condenados.
Tal como em diversas passagens das Escrituras bíblicas, as interpretações demasiado literais não são aceitáveis.
A frase acima mencionada indica que Jesus estava a recitar o Salmo 22, que se refere à lamentação do justo perseguido. Jesus identifica-se com o inocente torturado e maltratado, abandonado por todos. Jesus identifica-se como o Servo Sofredor, referido no livro do profeta Isaías.
Ao longo da sua existência terrena, Jesus revela-nos um Deus como a Fonte da Vida e do Amor. Pelo perdão e pela misericórdia, que sempre praticou, Jesus revela um Deus de ternura radical e de amor infinito.
Os gestos, as palavras e a vida de Jesus fazem vislumbrar um Deus totalmente incapaz de abandonar o seu Filho no momento mais angustiante e dolorosa da sua vida. Poderá o Deus de Jesus rejeitar o seu Filho no trágico momento em que este não passa de um agonizante mergulhado nas trevas mais densas? E uma perspetiva que se não pode aceitar.
Por meio de Jesus, Deus intervém na História da Humanidade, de forma radical e transformadora.
Parta-se do princípio que Deus não podia abandonar Jesus, o Messias anunciado pelos profetas do Antigo Testamento e que proclamou o Reino de Deus a Israel e à Humanidade em geral. Então, porquê este silêncio?
Um Deus que interrompesse o silêncio do Calvário, deixaria de ser o Deus que Cristo  manifestou. É que Deus manifesta-se gratuitamente, sem condições e sem nada exigir em troca. Não o faz para que a sua justiça ou a sua honra seja salvaguardada.
Nada há mais desarmado que o amor, porque o amor não pode deixar de se expor à liberdade daquele que se ama.
De facto, Jesus, agonizante na cruz, é a testemunha por excelência do amor gratuito e infinito de Deus.
Se Deus guardou silêncio no Calvário, fê-lo, para não contradizer o testemunho de Jesus, o qual revela um Deus que ama infinitamente a Humanidade, mas que respeita a sua liberdade.
Com efeito, esta aparente fraqueza de Deus remete para a liberdade e a responsabilidade do homem. Um teólogo cristão protestante, Dietrich Bonhoeffer, uma das principais personalidades da Resistência alemã contra a tirania nacional-socialista e executado em 9 de abril de 1945, pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial, escreveu o seguinte:  “Perante Deus e com Deus vivemos sem Deus, Deus deixa que o expulsem do mundo e que o cravem numa cruz. Deus é impotente e fraco no mundo e só assim está connosco e nos ajuda… Cristo não nos ajuda pela Sua omnipotência, mas  pela Sua fraqueza e pelos Seus sofrimentos”.
Estar diante de Deus e com Deus e viver sem Deus significa aceitar a nossa condição humana e não esperar que Deus ocupe o nosso  lugar.
Bonhoeffer revela um Deus que tem uma predileção especial pelas vítimas deste mundo, pelos que são atormentados pelas diversas formas de violência e de exclusão.
As vítimas e os pobres são o sinal dos tempos, a realidade dramática, diante da qual é preciso ter olhos novos para ver a verdade da realidade e reagir com um coração cheio de misericórdia, de amor e de justiça.
Mas a cruz não é o fim de tudo. Depois da morte na cruz, renasce a esperança, iluminada pela luz da ressurreição de Jesus, que expressa não só o poder de Deus sobre a morte, mas também sobre as diversas formas de injustiça que produzem as vítimas.
Se Deus ressuscitou um crucificado, há esperança para os crucificados da História
Portanto, a cruz é o lugar em que Deus proclama o seu verdadeiro nome, que em nada se confunde com os ídolos que criamos e adoramos demasiados vezes. O seu nome é Amor, um Amor que se faz próximo. Deus connosco, até no abandono mais absoluto.