quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Je suis parisien

Na passada sexta-feita, dia 13 de novembro, a barbárie irrompeu novamente no centro da Europa. As trevas ensombraram Paris, a cidade luz.
Após os totalitarismos que mancharam o século XX, com vários milhões de vítimas, os fundamentalismos religiosos e o fundamentalismo islâmico em particular são os grandes inimigos da liberdade e das sociedades democráticas e abertas.
Tive a oportunidade de conhecer verdadeiros muçulmanos na Europa e no Médio Oriente. Aqueles que apreciam a vida na sua diversidade. Aqueles que consideram que a verdadeira jihad é a luta interior de cada ser humano em busca do seu aperfeiçoamento ético e espiritual. Pessoas que estão cheias de vergonha por existirem criminosos que invocam o Corão e o profeta Maomé para legitimar a sua atuação bárbara e covarde.
Neste momento em que choramos a morte bárbara de cerca de duas centenas de concidadãos europeus e as centenas de feridos, muitos dos quais em estado muito grave, não devemos esquecer os cristãos, yazids e outros membros de minorias religiosas que têm sido barbaramente mortos no Médio Oriente no ano findo, bem como os dezenas de milhares que foram expulsos das suas casas e despojados da sua dignidade.
Não devemos esquecer os muçulmanos que têm sido perseguidos e mortos, porque não concordam com uma visão distorcida e retrógrada do Islão.
Não devemos esquecer o património cultural material e imaterial da Humanidade que tem sido sistematicamente destruído. Um património que constitui um legado de milhares de anos da nossa espécie, com as suas grandezas e as suas misérias, que as gerações atuais e futuras não conhecerão. Uma Humanidade sem consciência da sua memória está mais debilitada para compreender o presente e projetar o futuro.
Hoje, mais do que nunca, temos a responsabilidade de defender a liberdade e a dignidade do ser humano como pilares civilizacionais da Humanidade. Temos a responsabilidade de defender a liberdade religiosa e de consciência no seu sentido mais amplo, isto, a liberdade de acreditar em Deus ou não, de seguir uma determinada religião ou nenhuma, bem como mudar de religião.
O Antigo Testamento diz: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. No Novo Testamento, está escrito: "Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é Amor”. No Corão, está enunciado: “Nenhum de vós é um crente, até quererdes para o vosso vizinho aquilo que quereis para vós”; “Se alguém matar uma pessoa seria como se ele matasse toda a humanidade, e se alguém salvar uma vida, seria como se ele salvasse a vida de toda a humanidade”. Nas escrituras budistas, um das principais afirmações de Buda é: “Não magoeis os outros com aquilo que vos magoa a vós”.
Um dia, Othman Jebreal, guardião da Mesquita Al-Aqsa, em Jerusalém, um dos locais mais sagrados do Islão, disse: “O perigo não está nos livros sagrados. Está na mente daqueles que os interpretam”.
Há um princípio, a regra de ouro presente e preservada há milênios em diversas tradições religiosas e éticas da humanidade: não faças ao outro o que não queres que te façam a ti. Ou, formulada de modo positivo: faz aos outros o que queres que te façam também a ti! Essa deveria ser a norma inamovível e fundamental para todos os campos da vida, para as famílias e as comunidades, para as nações e religiões.
Não se pode transformar a nossa Terra para melhor sem que se mude a consciência da pessoa humana. Atualmente, é o momento de defender uma mudança individual e coletiva da consciência, em favor de um despertar de nossas forças espirituais e em favor de uma conversão das mentes e dos corações.

Juntos podemos mover montanhas! Juntos podemos ajudar a construir um mundo cujas criaturas não sejam atormentadas pela guerra, torturadas pela fome e pelo medo, para que os nossos filhos e os filhos de nossos filhos possam ter orgulho da sua condição de seres humanos.

O Divino segundo Espinosa



Introdução
Um dia, perguntaram a Albert Einstein pedindo que ele respondesse a uma simples pergunta: “O senhor acredita em Deus?” A resposta foi: “Acredito no Deus de Espinosa, que se revela na harmonia ordeira daquilo que existe, e não num Deus que se interesse pelo destino e pelos atos dos seres humanos”.
Noutra ocasião, Einstein afirmou: “Não sou ateu, e não creio que possa me chamar panteísta. Estamos na situação de uma criancinha que entra em uma imensa biblioteca, repleta de livros em muitas línguas. A criança sabe que alguém deve ter escrito aqueles livros, mas não sabe como. Não compreende as línguas em que foram escritos. Tem uma pálida suspeita de que a disposição dos livros obedece a uma ordem misteriosa, mas não sabe qual ela é. Essa, ao que me parece, é a atitude até mesmo do mais inteligente dos seres humanos diante de Deus. Vemos o Universo, maravilhosamente disposto e obedecendo a certas leis, mas temos apenas uma pálida compreensão delas. A nossa mente limitada capta a força misteriosa que move as constelações. Sou fascinado pelo panteísmo de Espinosa, mas admiro ainda mais a sua contribuição para o pensamento moderno, por ele ter sido o primeiro filósofo a lidar com a alma e o corpo como uma coisa só, e não como duas coisas separadas”.
A conceção do Divino segundo Espinosa assume uma especial relevância para a nossa contemporaneidade. Em última análise, pode se dizer que é uma conceção e um ponto de vista que se aproxima bastante de muitas posições religiosas ou espiritualistas dos nossos tempos.

Breve nota biográfica
Baruch de Espinosa nasceu em 24 de novembro de 1632, em Amesterdão, filho de pais judeus, oriundos de Espanha, que se mudaram para Portugal e daí para a Holanda, por causa das perseguições religiosas. Educado na comunidade judaica de Amesterdão, começou por receber os ensinamentos tradicionais do judaísmo. Desde muito jovem, foi um estudante notável, que deu uma grande preferência à filosofia e à teologia. A sua crítica em relação ao judaísmo ortodoxo levou a um grave conflito com a sua comunidade religiosa de origem. Em 1656 foi expulso da sinagoga de Amesterdão, acusado de blasfémia. O ano de 1656 marcou o início de uma prolongada aventura solitária para Espinosa. Teve de abandonar Amesterdão para sempre, já que todos os judeus ficaram proibidos de lhe dirigir a palavra, incluindo os seus familiares mais próximos. Após a sua condenação, viveu em várias cidades holandesas, dedicando-se ao ofício de polidor de lentes. Apesar de Espinosa ter levado uma vida relativamente solitária, a verdade é que se correspondeu com muitos intelectuais da sua época. Quando a sua fama de grande filósofo ecoava por toda a Europa, teve oportunidade de recusar o convite para lecionar Filosofia na Universidade alemã de Heidelberg, com o argumento de não estar interessado em trocar a sua liberdade e independência de espírito pelas limitações impostas à vida de professor universitário. Quando Espinosa morreu, em 21 de fevereiro de 1677, tinha apenas 44 anos de idade. Deixou uma das mais importantes obras filosóficas de todos os tempos. As suas obras principais foram: Ética Exposta ao Modo Geométrico; Tratado Teológico-Político; Tratado da Reforma do Entendimento; Epistolário.

A Substância Divina
Espinosa apresenta a seguinte definição de Deus: “Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita”.
Substância, conforme Espinosa, é aquilo que existe em si mesmo e é concebido por si mesmo, ou seja, algo inteiramente independente de qualquer outra coisa, tanto no que se refere à sua existência quanto à sua essência.
Deus é uma substância. Logo, Deus é causa de si, eterno e infinito. Mas não só, falta um dado capital: Deus não é apenas uma substância, Deus é a Substância. “Afora Deus, afirma Espinosa, nenhuma substância pode ser dada nem concebida.”
Portanto, Deus define-se como a Substância única, infinita e causa de si, fora do qual nada pode existir nem subsistir. Deus, Ser em si e por si, é imanente a toda a realidade.
A conceção de Espinosa sobre Deus coloca em causa todas as religiões instituídas. Com efeito, a ideia de um Deus pessoal, criador e legislador supremo do Universo, dotado de atributos morais e transcendente ao Universo, não passa de uma ilusão antropomórfica, segundo Espinosa.
Espinosa nega a Criação e substitui-a pela manifestação da Substância Divina que se exprime em modos, nos quais não existe subordinação a um desígnio, sendo possível explicar o Universo sem recurso a causas finais.
Como nenhuma existência em si pode afirmar-se fora de Deus, tudo o que existe na Natureza surge como modificação da Substância Divina.

Os atributos e os modos da Substância Divina 
A Substância Divina engloba uma infinidade de atributos, também eles, que manifestam a essência do Divino. De entre estes atributos, somente dois são acessíveis ao conhecimento humano: o Pensamento e a Extensão. Enquanto o Atributo-Pensamento manifesta Deus idealmente, o Atributo-Extensão mostra Deus materialmente.
Espinosa distingue os atributos divinos dos modos divinos; aos atributos da o nome de Natureza Naturante e aos modos de Natureza Naturada, onde, mesmo que todas as coisas existam em Deus e exista em todas as coisas, não significa que haja uma interligação entre a essência de Deus e a essência dos modos. A essência de Deus é uma potência de causa inesgotável. Dá o nome de Natureza Naturante à substância e seus atributos enquanto atividade infinita que produz a totalidade do real e dá o nome de Natureza Naturada à totalidade dos modos produzidos pelos atributos. Desta forma, Deus não é uma causa que se separa dos efeitos após tê-los produzido, mas é causa imanente e eficiente de seus modos e se expressa por eles e eles a expressam.
Portanto, a natureza naturante é Deus como princípio de todas as coisas, enquanto a natureza naturada é o conjunto das coisas determinadas e finitas que emanam do poder infinito de Deus. A substância é a natureza ativa, ou Deus, e o modo é a natureza passiva, a matéria, ou o Universo. É por isso que Espinosa afirma que as leis universais da natureza e os eternos decretos de Deus são uma e a mesma coisa.

A ética
Espinosa vai tirar da sua noção de substância uma teoria da liberdade humana que se afasta do livre arbítrio: a vontade de Deus e as leis da natureza, sendo uma e a mesma realidade, diversamente expressa, segue-se que todos os fenómenos são o efeito mecânico de leis invariáveis. A visão de Espinosa leva-o afirmar que a vontade de Deus é a soma de todas as causas e leis e que o intelecto de Deus é a soma de todos os pensamentos. É por isso que afirma que o Espírito de Deus é a mentalidade difusa no espaço e no tempo, a consciência difusa que anima o Universo.
O sistema ético preconizado por Espinosa pretende ajudar os seres humanos a dizer sim à vida e também à morte...Com a ampliação das suas perspetivas, esta filosofia pretende acalmar os nossos atormentados egos e reconciliar com as nossas limitações. Pode levar à resignação ou à passividade; mas é também a base indispensável de toda a sabedoria e força.
Espinosa encara a noção da imortalidade de uma forma muito diferente do conceito criado pelas grandes religiões monoteístas: "enquanto partes do todo somos imortais. O espírito humano não pode ser absolutamente destruído com o corpo; parte dele permanece eterna, a parte que concebe as coisas sub specie aeternitatis; quanto mais concebemos desse modo as coisas, mais eterno é o nosso pensamento". Mas distingue eternidade de perpetuidade. A eternidade não pode confundir-se com duração. Tão-pouco, a memória individual pode sobreviver à morte do corpo, porque o espírito só pode lembrar-se quando está no corpo. Também não acredita em recompensas após a morte. Aquele que, em vida, serve a Deus, obtém a recompensa enquanto vive, na serenidade e tranquilidade que andam associadas à felicidade, pois a bem-aventurança não é a recompensa da virtude mas a virtude em si. A imortalidade do pensamento justifica-se porque a verdade é uma criação permanente, constituindo uma aquisição eterna do ser humano.

A crítica espinosista à religião
Na sua obra, Espinosa aborda de forma crítica o estatuto da religião. Ao submeter os textos bíblicos e os textos sagrados em geral a uma crítica histórica e filológica, Espinosa pretende demonstrar que a Bíblia pode e deve ser estudada como qualquer obra antiga, lançando os fundamentos da exegese bíblica moderna. Na sua perspetiva, os autores bíblicos, longe de utilizarem a linguagem da razão, utilizam a da imaginação e da sensibilidade, de modo a incentivar a veneração dos seres humanos em relação a Deus e aos seus mandamentos.
Espinosa critica as religiões instituídas porque estão alimentadas pelo medo e pela supertição, preconizando uma interpretação racional dos textos sagrados. A diferença entre filosofia e religião é que a primeira busca a verdade e a sugunda precisa da obediência para ser realizada.
As críticas que Espinosa faz às religiões instituídas, nomeadamente ao aparato de crenças, cultos e práticas que elas englobam, não põem em causa a existência a relevância de Deus. Um Deus que os seus contemporâneos têm dificuldade em reconhecer como tal.
Contrariamente aos seus contemporâneos que valorizam o antropocentrismo colocando o ser humano como senhor e dono da terra, Espinosa coloca em primeiro lugar o Todo (Deus, Natureza, Substância) e desafia-nos a conhecer a totalidade, descobrindo nela o lugar que nos é devido. Se Deus é identificado com a Natureza nem por isso devemos abdicar da reverência, respeito e beatitude que habitualmente reconhecemos à divindade.
De acordo com Espinosa, a via do conhecimento, o caminho mais elevado da realização humana, procura encontrar Deus nos fenómenos naturais que são a sua expressão mais clara. A filosofia e a ciência (que no século XVII ainda se confundem) ajudam-nos a aceder ao conhecimento de Deus, que se manifesta na ordem e na conexão dos fenómenos naturais.
É este género de conhecimento que permite nos integrar na plenitude divina, participando do amor com que Deus se ama a si mesmo e nos ama.
Contata-se que que o conceito de Deus Natureza é complementado com o de Deus Amor de cuja gloria participamos.

Jesus como modelo ético universal
Se a forma como Espinosa pensou Deus foi polémica, a sua cristología não foi igualmente consensual. 
Espinosa era um conhecedor profundo da Bíblia, podendo ser considerado um dos fundadores da exegese bíblica, na medida em que fez uma análise histórica, filosófica e filológica das Escrituras.
Espinosa enalteceu a figura de Jesus e designou-o como “a boca de Deus”, considerando-o o único homem a quem Deus falou diretamente. Tal facto elevou-o acima dos profetas, incluindo Moisés, conferindo-lhe um estatuto singular.
Com efeito, Espinosa considera que os demais profetas receberam a revelação através da sensibilidade e da imaginação. Pelo contrário, Jesus teve conhecimento dos desígnios de Deus imediatamente, de modo inteiramente espiritual.
Contudo, Espinosa considera Jesus exclusivamente como ser humano, negando-se a aceitar a sua divindade.
Ao abordar a figura de Jesus, Espinosa tem duas finalidades. Por um lado, contribuir para a sua desmitologização, tratando-o como um ser humano e não como Deus. Por outro lado, a sua vida e atuação devem ser entendidas como um modelo ético a seguir por todos os seres humanos.
A sua conceção cristológica aceita a história. De acordo com Espinosa, Jesus é uma personagem cuja historicidade não levanta dúvidas, considerando-o como judeu, que revolucionou a religião na qual foi educado, transformando as leis particulares da Torá numa ética universal. Ao valorizar a sua atuação mediadora e o seu papel como exemplo para a Humanidade no seu todo, Jesus é considerado como o caminho da salvação.
Espinosa preconiza que a salvação pode ser obtida mediante o cumprimento de determinadas regras morais, que estão apresentadas nas Escrituras. De acordo com a sua perspetiva, o homem comum move-se essencialmente por paixões, que geram dissensões e conflitos, daí resultando a obediência às leis da sociedade humana e às regras morais. Neste contexto, o exemplo de Jesus é fundamental, pois quem seguir os seus ensinamentos salva-se.
Espinosa reconhece na mensagem de Jesus uma ética que proporciona estabilidade e harmonia aos seres humanos.
Para Espinosa, Jesus conseguiu conciliar uma dimensão filosófica, dificilmente compreensível pelos seus contemporâneos, e um pensamento ético expresso em ternos éticos e aceitáveis pelo senso comum, sem nunca denunciar as verdades fundamentais. Segundo Espinosa, ele foi a manifestação suprema, mas humana, da Sabedoria Divina. Foi o homem sábio, que mais do que qualquer outro, que se identificou com o Espírito de Deus. Por isso, deve ser considerado como modelo para a Humanidade no seu todo, não perdendo a sua condição humana.
Apesar de utilizar a expressão “Filho de Deus”, Espinosa atribui-lhe um significado diferente do usual, identificando-o com a Sabedoria Divina que se manifesta em todas as coisas.
Recusa o dogma da Encarnação, considerando-o incompreensível. A Ressurreição é analisada por Espinosa com maior cautela, tendo em conta que as aparições de Jesus após a sua morte foram presenciadas fora do círculo dos seus discípulos. Espinosa não duvida da boa-fé dos discípulos nem os acusa de embuste.
Na sua perspetiva, os acontecimentos pós-pascais, nomeadamente a Ressurreição e a Ascensão, foram manifestações da revelação divina, adaptadas a mentes humanas muito presas a explicações corporais.
Assim, defende que a Ressurreição deu-se num plano estritamente espiritual e foi revelada através dos meios ao alcance da compreensão humana dos discípulos.
Na sua reflexão sobre o cristianismo, Espinosa entende que a maioria das suas doutrinas é supérfluas e circunscreve-se ao que entende como essencial: que Deus se mantém em nós e nós nos mantemos em Deus.
Jesus é apresentado como um modelo de justiça e de caridade, chegando a afirmar: “onde as encontramos (a justiça e a caridade), está realmente Cristo; onde faltam, Cristo está ausente”.
Embora não reconhecendo a divindade de Jesus, Espinosa considera Jesus como um modelo ético exemplar e a fidelidade á sua mensagem é considerada como um critério para uma vida eticamente digna, à qual todos os seres humanos devem aspirar.

Conclusão
Do que foi atrás mencionado pode concluir-se que Espinosa atribui a Deus um papel fundamental, mas que o considera de um modo muito peculiar.
Trata-se de um Deus que se manifesta na ordem e na conexão dos fenómenos naturais, desde a mais ínfima partícula ao Universo no seu todo.  
Um dia, Espinosa escreveu um poema sobre Deus que acaba da seguinte forma:

“Não me procures fora!
Não me acharás.
Procura-me dentro… aí é que estou, batendo em ti.” 

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O diálogo entre as espiritualidades e a ecologia


Atualmente, porventura mais do que nunca, o diálogo entre as diversas espiritualidades assume uma relevância fundamental para o progresso ético e civilizacional da Humanidade
Não se trata de alcançar uma religião única, nem de promover um cocktail de religiões, nem tão pouco de substituir a religião por uma ética.
A meta de um entendimento universal entre as religiões e as demais espiritualidades deve ser uma ética comum da Humanidade, baseada em valores de verdade e de tolerância a nível planetário e na responsabilização dos seres humanos relativamente ao seu próprio presente e futuro e ao futuro do nosso planeta.
O diálogo entre as diversas religiões e espiritualidades passa por um caminho racional de tolerância e de diálogo empenhado, acompanhado de investigações aprofundadas no domínio do estudo comparado das diversas correntes religiosas, espirituais e filosóficas.
Um dos domínios privilegiados para este diálogo é a ecologia, tendo em conta que é da maior relevância enfatizar a responsabilidade humana de preservar um ambiente sustentável para todos.
Com efeito, a Humanidade de hoje, se conseguir conjugar as novas capacidades científicas e tecnológicas com uma elevada dimensão ética, será certamente capaz de salvaguardar o planeta Terra como lar comum da espécie humana no seu todo, respeitando os direitos das gerações atuais e vindouras a uma vida livre, digna e feliz.
Neste âmbito, serão analisadas sucintamente as perspetivas budista e cristã sobre a ecologia.

A ecologia no budismo
O budismo considera que o Universo e todas as criaturas que nele existem se encontram num estado de sabedoria, amor e compaixão completos, atuando em reciprocidade e interdependência.
Segundo os ensinamentos budistas, há uma interdependência muito próxima entre o meio ambiente natural e os seres humanos e os demais seres sencientes que nele habitam.
Considerando que que os seres humanos são basicamente gentis por natureza, o budismo preconiza que devem-se manter relações gentis e pacíficas com a comunidade de seres humanos, mas também que é da maior relevância muito importante estender a mesma atitude gentil para com o meio ambiente natural.


A ecologia no cristianismo
A Bíblia ensina que cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus. Não somos Deus. A Terra existe antes de nós e foi-nos dada,
O convite a dominar a Terra contido no livro do Génesis não significa favorecer a exploração selvagem da natureza, mas cuidar da Terra como quem cuida de um jardim. Os ensinamentos das Escrituras bíblicas apelam aos seres humanos a reconhecer que cada criatura é objeto da ternura do Divino que lhe atribui um lugar no mundo.
Recentemente, em 18 de junho do presente ano, o papa Francisco anunciou a sua encíclica “Laudato si”, que tem como temática central a ecologia.
A encíclica é o grau máximo das cartas que um Papa escreve e a expressão 'Laudato si' (Louvado seja) remete para o “Cântico das Criaturas”, de Francisco de Assis, que mostrou na sua vida como são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os mais pobres e vulneráveis, a participação na sociedade e a paz interior.
É a primeira vez que um papa aborda o tema da ecologia no sentido de uma ecologia integral  de forma tão completa. Além disso, aborda o tema dentro do novo paradigma ecológico, coisa que nenhum documento oficial da Organização das Nações Unidas até hoje fez.
Fundamental é seu discurso com os dados mais seguros das ciências da vida e da Terra. Lê os dados com uma profunda intuição, pois discerne que por detrás deles se escondem dramas humanos e ecológicos. Valoriza a colegialidade, incluindo as contribuições de dezenas de conferências episcopais do mundo inteiro. Acolhe as contribuições de outros pensadores como os católicos Pierre Teilhard de Chardin, Romano Guardini, Dante Alighieri e Juan Carlos Scannone, do protestante Paul Ricoeur e do muçulmano sufi Ali Al-Khawwas. Por fim, os destinatários da encíclica são todos os seres humanos, pois todos são habitantes da mesma casa comum.

A ética universal e a ecologia  
Atualmente, é um imperativo ético cuidar da natureza, porque é criação, dom e presente de Deus.
Nesta imensa missão, precisamos do contributo das sabedorias do Oriente do Ocidente. Ambas estão contidas nos três aspetos fundamentais da via do Dharma: sabedoria (prajna), meditação (dhyna) e ética (sila).
Quando, a partir da espiritualidade cristã, se deixa impelir pela escuta budista da voz do Dharma, enriquece-se o que significa para a consciência cristã respirar no Espírito. A espiritualidade budista também é enriquecida.
Portanto, o diálogo entre as espiritualidades pode contribuir para o encorajamento de um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar felicidade e alegria. A ecologia integral implica passar da exterioridade à interioridade, para descobrir a presença do Divino em todas as coisas.
Baseando-se na sua própria experiência, Ali Al-Khawwas, um dos principais mestres espirituais do sufismo islâmico, enfatizava a importância de não separar demasiado as criaturas do mundo e a experiência interior do Divino. Dizia ele: «Não é preciso criticar preconceituosa­mente aqueles que procuram o êxtase na música ou na poesia. Há um “segredo” subtil em cada um dos movimentos e dos sons deste mundo. Os iniciados chegam a captar o que dizem o vento que sopra, as árvores que se curvam, a água que corre, as moscas que zunem, as portas que rangem, o canto dos pássa­ros, o dedilhar de cordas, o silvo da flauta, o suspiro dos enfer­mos, o gemido dos aflitos… ».  

domingo, 14 de junho de 2015

O Divino no budismo e no cristianismo: pistas para uma espiritualidade de diálogo


Muitos autores consideram o budismo como uma religião ateia, na qual não existe lugar para Deus, entendendo-se por Deus a Realidade que transcende o Universo, a Natureza e a Humanidade. Alguns consideraram inclusive o budismo como uma filosofia de vida e não como uma religião.
Uma das principais razões para isso é o facto de Sindartha Gautama, o fundador do budismo, ter preconizado uma mensagem espiritual mais baseada na ortopraxia, isto é, na busca de vida eticamente correta e orientada, do que na ortodoxia, ou seja, na formulação de uma doutrina dogmática estruturada e formalizada.
Com efeito, Sindartha Gautama, num dos seus discursos, estabeleceu a sua posição:
«Que o mundo é eterno ou não, não expliquei e porque não expliquei? Isso ocorreu porque essa conexão não é essencial para a conduta e não determina por recusar nem a falta da paixão, nem o conhecimento, nem desperta o nirvana.»
Sindartha Gautama, na sua qualidade de Buda histórico, não nega ou afirma que o Universo teve o seu princípio pelo ato de uma divindade criadora, desvalorizando as questões sobre a origem do Universo
Além disso, o budismo enfatiza o sistema de relações causais subjacentes ao Universo, que são de ordem natural, desvalorizando a dependência de fenómenos ou realidades sobrenaturais para explicar o comportamento da matéria.
De acordo com o budismo, o principal objetivo da espiritualidade é a superação do sofrimento (duhkha), provocado pelo ciclo dos renascimentos (samsara), e a concretização do nirvana enquanto caminho da salvação.
Embora os budistas rejeitem a conceção teísta de Deus, característica das religiões do Ocidente e do Próximo Oriente, nomeadamente do cristianismo, do judaísmo e do islão, aceitam a existência de uma realidade espiritual última, considerada como a vacuidade de tudo o que existe, a quem denominam Paramârthasatya (em sânscrito) ou Paramthassaca (em pali), que significa “Grande Ser”, “Poder do Transcendente” ou “Autoridade Espiritual Suprema.
Um erro comum a muitos ocidentais é a confusão entre os conceitos de Deus e de Buda. Para comparar o que o budismo diz do Buda histórico e do Buda eterno com o que o cristianismo diz do Deus que Jesus manifesta, podemos distinguir três realidades distintas, que correspondem às três manifestações de Buda chamadas buddha-kaya.
A primeira chama-se Nirmana-kaya, que corresponde ao Buda histórico, isto é, a Sindartha Gautama, ao corpo assumido e manifestado neste mundo, num determinado contexto espácio-temporal. Corresponde igualmente ao corpo histórico de Jesus de Nazaré, o Cristo histórico.
A segunda manifestação é a chamada Sambboga-kaya, que corresponde ao corpo glorioso, que desfruta de ter alcançado a conexão com o Divino. Deste segundo corpo, afirma-se que não tem forma, segundo os nossos padrões espácio-temporais, mas pode falar-se dele como tornado visível numa figura humana.
Da mesma forma que Jesus tornou-se o Cristo ao receber o Espírito de Deus no momento do seu batismo, nas águas do rio Jordão, Sindhartha tornou-se o Buda, o Iluminado, no momento do seu despertar debaixo da árvore bondhi.    
Por fim, a terceira manifestação é a denominada Dharma-kaya, o corpo essencial ou o corpo-verdade, que está para além do espaço e do tempo. Corresponde ao conceito cristã de Logos, a luz pelo qual tudo existe, que emana diretamente do Divino.
É preciso ter em conta que Buda não é uma divindade encarnada. Buda significa alguém que alcançou a iluminação e posteriormente se dedicou a ajudar outros seres a alcança-la. O conteúdo revelado nesta ilimunação é o Dharma, a realidade autêntica, como unidade de luz e vida, de felicidade e amor.
Neste sentido, os budistas podem aceitar Jesus é manifestação do Dharma, mas não a única. Aqui, dividem-se os cristãos. Os que insistem que só Jesus é o Cristo e os que consideram que Cristo é mais abrangente do que Jesus e que Deus é o Mistério fundamento do Universo e da Vida que se manifestou em Jesus.
Em novembro de 2012, o teólogo cristão Jean-Yves Leloup, defensor do diálogo inter-religioso, disse no Rio da Janeiro, a Cidade Maravilhosa. «Quando um homem se encontra num quarto escuro, tem de abrir todas as janelas: a janela que está virada para o Ocidente e a janela que está virada para o Oriente. Temos necessidades de todas as luzes. Ontem como hoje, temos necessidade da luz do Buda e da luz do Cristo».
Carl Justav Jung disse também que Jesus, o Cristo, e Sindartha, o Buda, representava cada um o Verdadeiro Eu, para o Ocidente e Oriente, respetivamente,  
Numa época na qual a Humanidade se confronta com tantos desafios, a espiritualidade do futuro será a espiritualidade que abra novos horizontes para a nossa mente e alargue a generosidade do nosso coração.
Uma espiritualidade que escutando o Dharma e respirando o Espirito, promova a transmutação do ser humano pela prática do amor incondicional, da compaixão, do altruísmo e do desapego.
Uma espiritualidade que transforme as relações dos seres humanos entre si, com a Natureza e com a Fonte originária de onde emana todo o Universo. 
 
 
 

domingo, 24 de maio de 2015

O Pentecostes como sinal de uma Humanidade nova



Em 24 de maio, assinala-se o dia de Pentecostes. Inicialmente, o Pentecostes era uma festa agrícola, associada à fase final da estação da primavera, na qual se agradecia a Deus pela colheita do trigo e da cevada, mas posteriormente tornou-se a festa na qual se comemorava a entrega dos Dez Mandamentos a Moisés, no monte Sinai, cinquenta dias do Êxodo do povo hebreu da dominação no Egito. Daí que esta festividade fosse um motivo para grandes peregrinações de judeus e prosélitos oriundos dos diversos territórios da diáspora à cidade santa de Jerusalém.
No dia de Pentecostes do ano 30, há precisamente 1975 anos, reuniu-se na parte baixa de Jerusalém, conhecida também como cidade de David, uma comunidade de judeus seguidores de Jesus. Não era uma comunidade muito numerosa. Depois dos acontecimentos terríveis e adversos que antecederam a Páscoa daquele, não tinham permanecido muitos membros. 
Contudo, após a experiência terrível da prisão e da morte de Jesus, algumas mulheres e alguns homens tinham passado por vivências extáticas e visionárias que fizeram surgir dentro deles a convicção firme de que Jesus estava vivo, embora numa dimensão diferente da nossa dimensão física e espácio-temporal. O Jesus que tinha proclamado a Boa Nova, que tinha sido torturado e morto, Deus não o abandonou, mas ressuscitou-o para a vida eterna. Foi elevado por Deus, sendo agora o arauto por excelência do Reino Divino do amor e da paz, o que aponta o caminho, a verdade e a vida.
Os discípulos de Jesus, bem como os seus irmãos e a sua mãe, Maria, reuniram-se no local onde tinha sido a última ceia de Jesus.
A narrativa do Pentecostes nos Atos dos Apóstolos dá conta de um conjunto de experiências espirituais especialmente intensas que transmutaram a vida daqueles homens e das daquelas mulheres e que mudaram o curso da própria História da Humanidade.



A comunidade vivenciou a experiência do Espírito de Deus O Espírito é apresentado como a força infinita de Deus, através de dois símbolos: o vento de tempestade e o fogo. São os símbolos da revelação de Deus no monte Sinai, quando Deus deu ao povo de Israel a Lei e estabeleceu a sua aliança. Estes símbolos evocam a força irresistível de Deus, que vem ao encontro da pessoa humana, comunica com esta e que a transmuta radicalmente.
O Espírito de Deus é apresentado em forma de línguas de fogo. A língua não é somente a expressão da identidade cultural de um grupo humano, mas é também a maneira de comunicar, de estabelecer laços duradouros entre as pessoas, de criar comunidade. Falar outras línguas é criar relações dos seres humanos entre si, com a natureza e com a Fonte originária de onde emana todo o Universo.
É o surgimento de uma Humanidade unida e reconciliada, pela partilha da mesma experiência interior, fonte de liberdade, de comunhão e de amor.
Impulsionada pela efusão do Espírito, a comunidade messiânica de Jerusalém superou as suas barreiras, os seus preconceitos e os seus receios e começou a profetizar a mensagem libertadora do Reino de Deus aos milhares de peregrinos oriundos dos diversos territórios da diáspora, de culturas e civilizações dispares.  
É neste enquadramento que deve-se entender os efeitos da manifestação do Espírito, na qual todos os ouviam proclamar na sua própria língua as maravilhas de Deus.
A proposta libertadora de Jesus faz de todos os povos uma comunidade de amor e de partilha, valorizando a diversidade de culturas que faz a riqueza da Humanidade. O essencial passa a ser a experiência do amor que, no respeito pela liberdade e pela diversidade, deve unir todas as pessoas da Terra.
E da maior relevância ter em conta que o Espírito de Deus é absolutamente livre e pode manifestar-se em todos os seres de boa vontade, que buscam a paz interior e exterior, atrás da prática do amor incondicional, do altruísmo, da compaixão e do desapego. Como disse Jesus ao seu discípulo e amigo Nicodemos: «O vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim, acontece com todo aquele que nasceu do Espírito (Jo 3,8)».
O Espírito de Deus não é propriedade de ninguém e de nenhuma confissão religiosa. Neste sentido, o Espírito de Deus manifestou-se em Jesus, mas também manifestou-se noutras figuras cimeiras da História espiritual da Humanidade, como Krishna, Moisés, Zoroastro, Siddartha Gautama (Buda), Confúcio ou Sócrates, entre outros.  
O Pentecostes anuncia a Humanidade nova, na qual todos os seres humanos serão capazes de comunicar e de se relacionar como irmãos, porque o Espírito reside no coração de todos como lei suprema, fonte de amor e de liberdade.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Da cristologia do Logos à cristologia do Espírito



A semana que antecede a Páscoa é considerada a mais importante do ano litúrgico cristão, na medida em que assinala a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus.  
Trata-se de uma oportunidade privilegiada para refletir sobre as novas perspetivas da cristologia, a disciplina da teologia que aborda a natureza de Jesus, a sua obra e a sua identidade, com especial enfoque na relação com Deus.
Desde a década de 1960, durante a qual houve transformações profundas nos diversos ramos do cristianismo, tem existido uma abundante reflexão cristológica.
Durante a maior parte do percurso do Cristianismo, tem predominado a Cristologia do Logos, marcada pelas definições dogmáticas dos Concílios e pelas teologias de influência escolástica e neo-escolástica.
Influenciada pela interpretação da afirmação do prólogo do Evangelho de João: “O Logos se fez carne” (Jo. 1,14),  a Cristologia do Logos enfatiza a divindade de Jesus e apresenta-o como o Logos, o Verbo ou o Filho Unigénito e Eterno de Deus que assume a condição humana. Portanto, trata-se de uma cristologia do alto, na medida em que parte da divindade de Jesus e tem como foco central a ideia de Encarnação.
Nas últimas décadas, tem existido uma valorização da Cristologia do Espírito. Esta corrente do pensamento cristológico não é inédita no percurso do Cristianismo, tendo tido altos e baixos, mas nas últimas décadas tem tido um vigor renovado e crescente.
A Cristologia do Espírito valoriza a humanidade de Jesus, que, pela graça e força do Espirito Santo, torna-se Filho de Deus no batismo e na ressurreição. Esta cristologia, que pode ser designada como cristologia de baixo, não se preocupa com a pré-existência e enfatiza a ação do Espirito de Deus na vida de Jesus como ser humano.  
Infelizmente, durante quase toda a história do Cristianismo, a divindade de Jesus foi exaltada em detrimento da sua verdadeira humanidade.
Não devemos precipitar-nos e rejeitar o legado dos concílios. Os cristãos e os crentes das demais religiões podem certamente partilhar a convicção de que Deus estava em Jesus, do mesmo modo que Deus está presente em cada um de nós. Isto é algo que os cristãos primitivos, de inspiração judaica e gnóstica, compreenderam. Um legado que o Cristianismo perdeu quando o judeo-cristianismo e o cristianismo gnóstico foram declarados heréticos.
Talvez não seja por acaso que descobertas tão relevantes como os manuscritos do Mar Morto e a biblioteca de Nag Hammadi tiveram lugar a partir dos meados do século XX.
Estamos em condições de promover uma revolução tranquila no entendimento sobre a pessoa, a identidade e a mensagem de Jesus.
Um entendimento mais pluralista, inclusivo e ecuménico, que enquadre a vida e a mensagem singulares de Jesus no contexto mais amplo das tradições religiosas e espirituais da Humanidade.
Uma nova visão da fé em Jesus que possa unir, ao invés de dividir, cristãos e outros homens e mulheres de boa vontade. Uma visão que permita abrir as portas frutíferas do diálogo e da compreensão entre as grandes correntes religiosas e espirituais do mundo contemporâneo.   
Atualmente, num mundo cada vez mais globalizado, no qual aumentam as relações entre os povos, o diálogo inter-religioso assume uma relevância cada vez mais premente, contribuindo para o progresso ético e espiritual da Humanidade.  

quinta-feira, 19 de março de 2015

O pai esquecido de Jesus



No calendário litúrgico cristão, o dia 19 de março é dedicado a José, companheiro e marido de Maria e pai de Jesus. Trata-se de uma oportunidade privilegiada para refletir sobre o papel espiritual de José.
Juntamente com Maria, José manifesta a plena humanidade de Jesus, que não contradiz a fé de que a existência, de Jesus se explica, em última instância, a partir de Deus, à semelhança de cada um de nós.
A este respeito, é importante referir que o próprio Joseph Ratzinger, o papa emérito  Bento XVI, escreveu em 1969: "A filiação divina de Jesus não se baseia (...) no facto de Jesus não ter pai humano; a doutrina da divindade de Jesus não seria posta em causa se Jesus fosse o fruto de um casamento normal."
Com efeito, uma grande parte dos cristãos primitivos partilhavam a convicção de que Jesus era o filho de Maria e José, considerando que isto não colocava minimamente a sua fé em Jesus como Messias anunciado pelos profetas do Antigo Testamento, glorificado e exaltado por Deus.
Nas últimas décadas, diversos investigadores tem revelado esta dimensão esquecida do cristianismo primitivo. Geza Vermes, um dos mais ilustres especialistas mundiais das Escrituras bíblicas (canónicas e apócrifas), escreveu um dia:
“Na versão definitiva das genealogias, tanto Mateus como Lucas insinuam, que apesar de tudo aparentar o contrário, José não era de facto o pai do filho de Maria. As palavras do texto tradicional de Mateus (4:16) tentam fugir ao problema: «Jacob gerou a José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.» Todavia, vários testemunhos textuais, alguns manuscritos e a tradição em siríaco do Sinai, afirmam que José era o pai de Jesus: «José, a quem estava prometido a virgem Maria, gerou a Jesus, que é chamado o Cristo.» O «Diálogo entre Timóteo e Áquila»,  de origem grega, que apresenta uma discussão entre um judeu e um cristão, confirma de modo sucinto, que «José gerou a Jesus, que era chamado o Cristo».(...) A propósito, a ideia de José ser o o pai natural de Jesus era professada pela antiga comunidade judaico-cristã dos ebionitas." 
Os próprios evangelhos canónicos também fazem referências a Jesus como o filho de José ou o filho do carpinteiro (Mc.6:3; Mt.13:55; Lc.4:22; Jo. 6:42).
Segundo as Escrituras bíblicas, José é um “homem justo”. A sua justiça emana da sua retidão interior, do acolhimento do dom da fé, e da elevada adoração para com Deus e do profundo afeto que ele tinha pelos seres humanos que partilhavam a sua vida, nomeadamente Maria, a sua amada companheira, e os seus filhos.
Nos Evangelhos do Novo Testamento, não faltam referências aos irmãos de Jesus e até chega a enunciar-se o número dos mesmos. De acordo com os evangelistas Marcos, Mateus e Lucas, os irmãos chamavam-se Tiago, José, Simão e Judas e existiam pelo menos duas irmãs, cujos nomes não são mencionados. Segundo a tradição cristã primitiva, as irmãs chamavam-se Maria e Salomé.
A conduta de José é características dos grandes indivíduos, de que nos fala a Bíblia, escolhidos e chamados por Deus para missões importantes.
Embora se considerassem pequenos, fracos e indignos, aceitavam e realizavam a missão, confiando em Deus como Fundamento da Existência e do Universo.
José não procurou os seus interesses, mas colocou-se inteiramente ao serviço dos que amava. O seu amor pela esposa, Maria, visava servir a vocação a que ambos tinham sido chamados. Deste modo, o casal chegou a uma união amorosa admirável, donde brotava uma enorme felicidade, inclusive nas situações mais adversas. Era a perfeição do amor, na sua dimensão mais elevada.
O amor de José por Jesus e pelos demais filhos era singular. Para José, os filhos não eram uma espécie de propriedade a quem impunha uma autoridade e afeto tirânico, como, não vezes, acontece. Considerava-os como seres que deveriam crescer, em graça e sabedora, com a cooperação essencial dos pais.
Os Evangelhos revelam Jesus como um ser cheio de cheio de amor, compaixão, bondade e sabedoria.  
É mais do que provável que ele foi uma criança que vivenciou amor, compaixão, bondade e sabedoria na sua família.
Os seus progenitores, Maria e José, foram em grande parte os responsáveis pela forma amorosa e ternurenta como Jesus encarava a relação entre a pessoa humana e o grande Mistério do Universo, da Vida e do Amor, a quem ele designava carinhosamente de Abba, que significa simplesmente papá.

sábado, 7 de março de 2015

A transfiguração de Jesus. a iluminação como encontro entre o céu e a terra




Na transfiguração, Jesus manifestou-se na sua comunhão com Deus. Os discípulos que a testemunharam – Pedro, Tiago e João – compreenderam a verdadeira identidade de Jesus.
Os discípulos já tinham percebido que Jesus era o Messias libertador anunciado no Antigo Testamento e que Israel tanto aguardava, mas ainda acreditavam que a missão messiânica de Jesus ia ser concretizada num triunfo sobre o Império Romano, a maior potência mundial da época, que também dominava a Palestina.
Com a transfiguração, mostra que que o seu pojeto messiânico não se vai concretizar em triunfos humanos, mas no amor e no dom da vida, até às ultimas consequências, culminando na cruz.
Na transfiguração, manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que ele é o filho amado de Deus e de que o projeto que apresenta a Israel e à Humanidade em geral é um projeto que vem de Deus. Um projeto que visa a libertação e a felicidade plenas da pessoa humana, que nos impele cada um de nós a valorizar a sua filiação e centelha divinas.
De ponto de vista literário, a narração da transfiguração é uma teofonia, isto é, uma manifestação de Deus. Com efeito, nos relatos dos Evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, os autores colocam no contexto da transfiguração todos os componentes das manifestações divinas associadas à mundividência judaica: o monte, as aparições, as vestes brilhantes, a voz provinda do céu, o temor e a perturbação daqueles que testemunham o encontro com o Divino. Todas estas componentes aparecem nos relatos das teofonias no Antigo Testamento.
De ponto de vista esotérico, a transfiguração pode ser entendido como a terceira das cinco grandes iniciações espirituais de Jesus (as outras quatro são o nascimento, o batismo, a ressurreição e a ascensão). A transfiguração retrata uma das grandes etapas do processo de iluminação de Jesus.  
O relato menciona que a transfiguração ocorre num monte, o que significa uma elevação do estado de consciiência. Nessa ocasião os predecessores de Jesus no caminho da salvação, representados por Moisés e Elias, os dois principais profetas do Antigo Testamento, participam desse momento de glória.
O facto da transfiguração ter ocorrido no alto de um monte (provavelmente o monte Tabor, na Galilleia) tem um elevado significado espiritual.
Representa o ponto no qual a natureza humana se encontra com o Divino, o encontro entre o temporal e o eterno, entre a matéria e o espírito, a terra e o céu.