segunda-feira, 2 de maio de 2016

Orígenes: a ponte entre o cristianismo e a fllosofia da Antiguidade


Uma vida notável
Quando Orígenes nasceu, Alexandria era um das principais cidades do mundo. No Império Romano, a sua importância somente era superada pela capital imperial. Para além da sua relevância estratégica e económica, Alexandria era conhecida como a cidade do saber e da filosofia, no qual confluíam as grandes correntes da sabedoria do Oriente e do Ocidente.
Quando o jovem Orígenes começa a sua aprendizagem, está em pleno desenvolvimento um dos principais sistemas de pensamento da filosofia da Antiguidade Clássica: o neoplatonismo. Orígenes, o seu homónimo pagão e Plotino foram discípulos de Amonio Saccas.
O sistema neoplatónico considera o Uno como o princípio superior de todo o Universo. O Uno está acima de todos os opostos e é infinitamente perfeito em si mesmo. Os seus principais atributos são a transcendência, a ininteligibilidade e a inacessibilidade. Ele é todas as coisas e nenhuma delas. É aquilo de que emana toda a existência, toda a vida e todo a valor, mas ele próprio é de tal ordem que nada podemos afirmar a seu respeito, nem a vida, nem a essência; é superior a tudo e fonte absoluta de tudo.
Na sua absoluta plenitude, ele transborda e produz consciência, que é a totalidade de todas as Ideias ou Arquétipos.
O Uno manifesta-se através de uma Tríade. Do Uno emana a Tríade: Ser, Inteligência e Criação, que são os Arquétipos, mediante os quais o Uno enquadra, pensa e forma o Universo. O Ser é a energia e a inspiração com todas as possibilidades do Uno. Porém, necessita do esquema da formação que lhe dá a Inteligência. E esta Inteligência concretiza-se na Criação.
Através de um aprofundamento filosófico, a alma pode tornar-se consciente da totalidade e elevar-se ao puro mundo das Ideias e alcançar a contemplação e a união com o Uno Absoluto.
Orígenes, cujo nome significa “Filho de Hórus”, nasceu numa família cristã de Alexandria. Com dezassete anos, Orígenes, o mais velho de sete irmãos, enfrentou uma tragédia que o marcou para o resto da vida. O seu pai, Tito Flávio Clemente, um homem que valorizava a educação dos seus filhos, foi preso e decapitado por causa das suas convicções religiosas. Os bens da família foram confiscados.
Uma mulher cristã rica acolheu Orígenes, que pôde deste modo prosseguir os estudos. De modo a sustentar a sua mãe e os seus irmãos, abriu uma escola de gramática e continuou a estudar com o filósofo Amonio Sacas, entre outros professores.
Perante as perseguições de que os cristãos foram alvo, Orígenes não se escondeu. Tratava da formação dos seus discípulos. Apoiava os cristãos que são presos ou condenados à morte. Ainda jovem, Orígenes mostrou que não era apenas um excelente professor, mas também um líder espiritual.
Orígenes assumiu a direção da famosa Escola Catequética de Alexandria, fundada por Clemente de Alexandria, um pensador cristão que também preconizava uma relação dialogante entre o cristianismo e a filosofia grega. Orígenes reorganizou e promoveu a escola. Na sua perspetiva, as diversas ciências, incluindo a matemática, a geometria, a astronomia, a lógica, a ética e a metafisica devem estar ao serviço de uma compreensão mais ampla do Divino. Além disso, a escola estava aberta a todos que desejam frequentar, sejam cristãos, pagãos ou judeus.
Orígenes teve um estilo de vida ascético. Renunciou ao matrimónio e à posse de bens materiais. Dormia no chão, andava sem calçado e abstinha-se de beber álcool. Dedicava-se ao estudo e à oração. Embora Orígenes tenha seguido um padrão de vida ascético e sóbrio, não obrigava ninguém a seguir o seu estilo de vida, pois considerava que cada pessoa tem a sua responsabilidade pessoal e deveria fazer o seu próprio caminho espiritual.
Em 231, Orígenes foi obrigado a abandonar Alexandria devido à animosidade do bispo Demétrio, que conseguiu o apoio do bispo de Roma, Ponciano, contra a perspetiva de alguns bispos da Palestina, que o apoiavam.
As razões deste conflito prenderam-se com as perspetivas filosóficas e teológicas de Orígenes, que defendia uma relação dialogante entre o cristianismo e a filosofia da Antiguidade e uma visão da espiritualidade baseada na mística e no amor. Desde então, Orígenes passou a viver em Cesareia, na Palestina, onde prosseguiu as suas atividades com grande êxito, fundando a Escola de Cesareia, nos moldes da Escola Catequética de Alexandria.
Na sequência da perseguição aos cristãos ordenada pelo imperador Décio, Orígenes foi preso e torturado. Entretanto, foi libertado, mas a tortura deixou sequelas que causaram a sua morte.
Mas a maior tragédia para Orígenes veio depois da sua morte. No quinto Concílio Ecuménico, realizado em Constantinopla em 553, um conjunto significativo de ideias de Orígenes, como a preexistência da alma, foram condenadas como heréticas, devido ao peso crescente dos setores que defendiam uma perspetiva exclusivista e fechada do cristianismo. A maior parte das suas obras foram destruídas, o que constitui uma perda irreparável para o cristianismo e a Humanidade em geral.
O diálogo entre o cristianismo e a filosofia da Antiguidade
O pensamento de Orígenes baseia-se no esquema platónico e gnóstico de distinção entre o mundo dos arquétipos e do mundo dos fenómenos, da queda e do retorno.
Orígenes dá uma grande relevância à questão da origem, da essência e do espírito, à semelhança do que acontece com os cristãos gnósticos.
Orígenes propõe uma visão global de conjunto que busca a conciliação entre o cristianismo e a filosofia da Antiguidade, com base num determinado conjunto de conceitos fundamentais:
- Deus, que constitui o centro por excelência do pensamento de Orígenes, que rejeita qualquer compreensão antropomórfica. Deus é concebido como o Uno primordial, a origem da vida, o espirito puro, absolutamente transcendente e incomensurável.
- Logos. O Logos é o próprio Deus e é simultaneamente a hipóstase de Deus. O Logos é a imagem perfeita e a ideia essencial de Deus. Apesar de ser uma essência de Deus, está subordinado a Deus.
- Espirito Santo. Na perspetiva de Orígenes, o Espirito Santo constitui a terceira hipóstase de Deus. Orígenes refere que em Deus existem três hipóstases em Deus, criando as bases de uma conceção trinitária de Deus.
- Seres espirituais. Todos os «seres espirituais» chamados logikoí, foram criados por Deus em liberdade, mas devido a uma falha original foram condenados. Os seres que cometeram uma falta ligeira tem um corpo etéreo, sendo os anjos. Os que cometeram uma falta mais grave tem um corpo opaco, sendo os demónios. Os seres humanos ocupam uma posição intermediária. Contrariamente ao que estabelecem certas correntes gnósticas, o mal não é da responsabilidade de um ser divino inferior, mas o resultado do uso irresponsável da liberdade das criaturas.
- Salvação. A salvação dos seres espirituais passa pelo retorno ao mundo superior, puro e eterno, da luz, facilitada pela encarnação do Logos. O Logos feito humano atua como mediador entre os seres espirituais e Deus: um anjo para os seres humanos, um ser humano para os seres humanos.
- Alma: A alma tem possibilidade de alcançar a perfeição, em liberdade e progresso. A vida interior é entendida como um processo espiritual de ascensão do espirito para além da vida terrena e material, até que a alma chegue à união com a divindade, tornando-se divina e imortal.
- Apokatástasis. Orígenes reconhece a pluralidade de formas de salvação do mundo. No fim, Deus será tudo em todos. O mal desaparecerá e tudo será restituído à pureza espiritual original. Os espíritos malignos serão igualmente salvos. Segundo Orígenes, Deus sai triunfante de tudo e apesar de tudo o que é negativo. 
 
A interpretação dos textos sagrados
Na interpretação dos textos sagrados, Orígenes afastou-se do literalismo. Tal como o ser humano é constituído por três dimensões – o corpo, a alma e o espirito – Orígenes preconizava que a compreensão adequada das Escrituras tinha três sentidos:
- O sentido somático-literal histórico, baseado na compreensão literal e material dos textos;
- O sentido psíquico-moral, que busca uma perspetiva mais ampla dos textos, para a qual o conhecimento dos clássicos é um fator relevante, tendo em conta que a filosofia é considerada como a propedêutica do cristianismo;
- O sentido pneumático-alegórico-teológico, que estabelece a ligação entre o exotérico e o esotérico. E a fase da gnose e da sabedoria interior, no qual se experimenta com todo o ser o Divino em tudo e em todos. Neste sentido, os textos das escrituras são transformados para o nível de alegorias.


A antropologia segundo Orígenes
Segundo Orígenes, o ser humano é um microcosmos no macrocosmos uma conceção que encontramos em diversas correntes filosóficas. Ele afirma: «Compreendei, pois, que sois, um segundo mundo em pequeno, que o Sol, a Lua e as estrelas estão dentro de vós».
Todas as almas humanas serão salvas por uma purificação no caminho de consumação de corpo em corpo, até à sua transformação em anjos. Orígenes mostrou abertura em relação à doutrina da reencarnação, muito presente na filosofia grega, nomeadamente em Pitágoras, Sócrates, Platão e na corrente òrfica.
Orígenes considera que o Universo é constituído por uma série de mundos habitados, onde a alma se aperfeiçoa. Diz-nos Orígenes: «Deus não começou a agir pela primeira vez quando criou este nosso mundo visível. Acreditamos que (...) antes deste houve muitos outros».
Orígenes acredita que tudo no universo tende a voltar a Deus, o ponto ômega. «Todos os espíritos se purificarão em sua marcha progressiva pela eternidade em direção a Deus, uma marcha longa e gradual, de correção e expiação, passando, portanto, por inúmeras reencarnações em mundos sucessivos». Diz Orígenes: «Devemos crer que (...) todas as coisas serão reintegradas em Deus (...). Isso, porém, não acontecerá num momento, mas lenta e gradualmente, através de infinitos séculos, já que a correção e a purificação advirão pouco a pouco e singularmente: enquanto alguns com ritmo mais veloz se apressarão como primeiros na meta, outros os seguirão de perto e outros ainda ficarão muito para trás. E assim, através de inumeráveis ordens (...)».
Orígenes valoriza a liberdade e o livre arbítrio de todas as criaturas, em todos os níveis de sua existência. É o uso responsável do livre arbítrio, juntamente com uma compreensão esclarecida do sentido do universo, que permite ao espírito unir-se ao amor infinito de Deus. Assim, terá cumprido o círculo, partindo do ponto de ignorância absoluta ao de sabedoria absoluta, sempre em direção a Deus.
Inspirado na filosofia grega, Orígenes faz uma distinção entre espirito, alma e corpo. Contrariamente a muitos pensadores da sua época, Orígenes tinha uma visão otimista da condição humana nas suas dimensões espiritual e física. Na sua perspetiva, o corpo era fundamental para a salvação da alma. Segundo ele «o mundo dos nossos sentidos tornou-se num mundo material por necessidade dos espíritos que precisavam de uma vida na matéria corpo».
O corpo, que Orígenes considerava como microcosmo, era um meio auxiliar com o qual o espírito se adaptava às circunstâncias do mundo material.~


Uma mística do amor
Orígenes propõe uma mística do amor, pois considera que a finalidade da condição humana é a contemplação e a união de Deus. Esta mística expressa-se de forma verdadeiramente admirável no seus comentários sobre o livro bíblico do Cântico dos Cânticos:
«A alma é impelida pelo amor celeste e pelo desejo quando, vendo o belo esplendor da palavra, se enamora da sua esplendorosa figura e recebe assim a seta e a ferida do amor. Esse Logos é, com efeito, imagem e semelhança do Deus invisível, do primogénito de toda a criação, em quem tudo, foi criado visível ou invisível, quer no Ceu quer na Terra.» 


Uma visão universalista da História
A história da Humanidade é considerada como um processo educativo grandioso que conduz à sua salvação, como uma pedagogia (paideía) de Deus com o ser humano. Isto significa que a imagem de Deus obscurecida pelo pecado é restabelecida em Cristo, mediante a providência e a intervenção educativa de Deus. Em Cristo, dá-se a «união da natureza divina com a natureza humana para que a humana se converta em divina mediante uma estreita união com o Divino». A encarnação de Deus é uma condição essencial para a divinização da Humanidade.