domingo, 30 de dezembro de 2012

Rússia: o País das duas revoluções


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O ano que está a terminar marca o 95.º aniversário de um dos processo de transformação social e histórica mais significativos do século XX e da História da Humanidade em geral: a Revolução Russa.
Escrevi “Revolução Russa”, mas será mais correto falar de Revoluções Russas. Com efeito, houve duas revoluções russas: a revolução de fevereiro e a revolução de outubro.
No início de 1917, a Rússia, um dos principais países beligerantes na Primeira Guerra Mundial, era um verdadeiro vulcão em vias de explosão.
No domínio social, caraterizava-se por uma sociedade em que a nobreza e a Igreja Ortodoxa constituíam dois grupos sociais claramente privilegiados, que detinham a grande maioria das propriedades, num país de dimensões continentais em que cerca de 80% da população era constituída por camponeses que viviam em condições miseráveis e de verdadeira servidão, apesar de esta ter sido formalmente abolida pelo czar Alexandre II em 1861. O operariado industrial, que representava 2% da população vivenciava igualmente duras condições de vida. A burguesia russa não era muito numerosa e forte, o que contribuía para uma sociedade cada vez mais polarizada e desigual. 
No domínio económico, predominava uma agricultura arcaica, tecnicamente atrasada e de baixo rendimento. A industrialização, intensificada no último quartel do século XIX, concentrava-se num reduzido número de cidades e empresas de grande dimensões, muitas delas dominadas por capitais estrangeiros. 
Politicamente, vigorava o regime de monarquia absoluta e autocrática. O czar Nicolau II, que reinava desde 1881, assenta o seu poder numa corte corrupta e ostensiva, nas forças armadas e policiais e numa Igreja Ortodoxa alheia a todas as tentativas de renovação teológica, eclesial e espiritual. 
Etnicamente, a Rússia czarista era uma prisão de povos. As numerosas nacionalidades não russas da Império achavam-se completamente privadas de direitos, submetidas continuamente a todo o género de ultrajes e humilhações. O regime czarista tinha ensinado a população russa a ver as nacionalidades não russas como etnias inferiores, às quais se dava o qualificativo oficial de gente "de outras raças", e inha inculcado o desprezo e o ódio em relação a elas. O regime alimentava conscientemente as discórdias nacionais, instigava uns povos contra os outros, organizava perseguições de judeus e massacres entre tártaros e arménios no Cáucaso.
Na sequência da derrota da Rússia na guerra com o Japão (1903-1905), as diversas forças políticas de oposição ao absolutismo czarista tentaram uma revolução, em 1905. Apesar da revolução ter sido violentamente reprimida, o czar Nicolau II, relutantemente,  lançou o famoso Manifesto de outubro, que permitiu a criação de uma Duma (Parlamento) nacional e a existência de partidos políticos. Estas medidas surtiram escasso efeito, visto que os partidos eram sistematicamente vigiados e a Duma era controlada pela aristocracia e pelo czar, cujos poderes continuaram bastante amplos, fazendo dele o último monarca absoluto da Europa. Em 1914, a Rússia entrou em guerra como aliada da Entente contra as Potências Centrais (Alemanha, Império Austro-Hungáro e Império Otomano). A guerra agravou as dificuldades da população do vasto Império Russo em geral, agravando as suas precárias condições de vida. No plano militar, a Rússia foi derrotada pela Alemanha e pelos seus aliados com certa facilidade.
Em 23 de fevereiro de 1917, pelo calendário juliano, que se refere ao dia 8 de março no calendário gregoriano, uma série de reuniões e manifestações aconteceram em Petrogrado, por ocasião do Dia Internacional da Mulher. Nos dias que se seguiram, a agitação continuou a aumentar, recebendo a adesão das tropas encarregadas de manter a ordem pública, que se recusavam a atacar os manifestantes.
No dia 27 de fevereiro, uma multidão de soldados e trabalhadores com trapos vermelhos em suas roupas invadiu o Palácio Tauride, onde a Duma se reunia. Durante a tarde, formaram-se dois comités provisórios em salões diferentes do palácio. Um, formado por deputados moderados da Duma, que se tornaria o Governo Provisório. O outro era o Soviete de Petrogrado, formado por trabalhadores, soldados e militantes socialistas de várias correntes. Temendo uma repetição dos incidentes sangrentos de 1905, o grão-duque Mikhail ordenou que as tropas leais baseadas no Palácio de inverno não se opusessem à insurreição e se retirassem. Em 2 de março, cercado por amotinados, Nicolau II assinou sua abdicação.
Em face desta situação, a Duma proclamou a República, pondo fim à Monarquia imperial. Formou-se o Governo Provisório presidido pelo príncipe Georgy Lvov, um liberal, tendo o socialista Aleksandr Kerenski como um dos seus ministros mais proeminentes.  
Era um governo interessado em manter a participação russa na Primeira Guerra Mundial e que pretendia fazer instaurar Rússia um regime político democrático e federal.
O Governo Provisório não conseguiu debelar a crise interna e ainda insiste na continuação da guerra contra a Alemanha, em 4 de maio, um novo governo Provisório é formado, agora por mencheviques e socialistas-revolucionários, sendo presidido por Aleexandr Kerenski. 
A crise social e as derrotas na guerra contra a Alemanha provocam diversas sublevações, como as Jornadas de julho, que tiveram a participação dos marinheiros de Kronstadt. As insubordinações são controladas, porém é grande a pressão da população, é justamente depois desses incidentes, que Kerensky surge como principal dirigente do Governo Provisório e os socialistas reformistas chegam a obter maioria. 
Nessa conjuntura, o derrube do Governo Provisório já estava certamente desenhado, Lenine, líder do Partido Bolchevique, com a ajuda secreta da Alemanha, entrou clandestinamente na Rússia, criando as condições para a organização de uma insurreição armada que tem seu ponto culminante no dia 25 de outubro de 1917, que marcou a Revolução Vermelha.
Nessa ação, merece destaque a constituição de um Comitê Militar Revolucionário sob a liderança de Trotsky formado por quarenta e oito bolcheviques, quatro anarquistas e quatorze socialistas revolucionários de esquerda, sendo responsável pela ação que toma o Palácio de inverno em Petrogrado, sede de Kerensky e do seu governo. Kerensky fugiu da Rússia. Os bolcheviques, largamente maioritários no Congresso Panrusso dos Sovietes, tomam o poder em 7 de novembro de 1917. É criado um Conselho dos Comissários do Povo, presidido por Lênine. Trotsky assume o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Estaline o das Nacionalidades. . 
Com o  fim da Revolução Branca, que vislumbrava uma Rússia democrática, verificou-se o surgimento do primeiro regime comunista do mundo, que assumiu rapidamente um caráter totalitário, escravizando e exterminando milhões de pessoas sistematicamente durante várias décadas, até ao derradeiro colapso, em 1991. E esta mesma ditadura por fim, dividiu o mundo, originando a Guerra Fria.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Contemplar Deus para além do masculino e do feminino

Eye of God


Quando se fala de Deus, geralmente a sua imagem está ligada à dimensão masculina. Mas esta imagem não tem fundamento sólido na História de revelação divina.
Com efeito, no primeiro livro da Bíblia, o, Génesis, é mencionado claramente que Deus criou a Humanidade e a criou homem e mulher; e criou ambos como sua imagem e semelhança (Gn 1, 27).
Portanto, somente enquanto masculino e feminino, a Humanidade representa Deus no planeta Terra. Deus está muito para além do género.
Nas últimas décadas, muitos cristãos deram conta de que a linguagem religiosa estava demasiado presa dentro da dimensão masculina.
Baseados na verdade fundamental da fé de que cada pessoa humana é imagem e semelhança de Deus, muitos crentes questionaram se não devemos superar a linguagem sexista (usando só os termos de um sexo, no caso, do masculino) e chegar a utilizar um discurso que aproveita tanto os valores de um sexo quanto de outro para expressar a riqueza infinita do Mistério Divino.
Efectivamente, um crescente número de crentes evitam de falar só de homem para expressar a humanidade e aprendem a dizer sempre homem e mulher, ou simplesmente o ser humano, ou a pessoa humana.
De forma semelhante, evitam de falar de Deus apenas como Pai; introduzindo também a palavra Mãe. Em 1978, o Papa João Paulo I, cujo pontificado durou somente 33 dias, fez um dia a seguinte proclamação numa audiência pública:"Deus é Pai, mas é principalmente Mãe". Esta proclamação provocou um profundo incómodo nos setores mais conservadores da Igreja Católica.
No Antigo Testamento, os profetas usavam expressões que simbolizavam Deus como a Mãe que eleva as pessoas até o colo, beija-as e enxuga-lhes as lágrimas. Ao dizer que Deus é misericordioso, para a mentalidade judaica significa dizer: Deus é como uma mãe que possui entranhas e se compadece de seus filhos e filhas como toda mãe se comove de seus filhos e de suas filhas.
Em Jesus, encontramos a integração perfeita do feminino e do masculino. Em primeiro lugar do masculino, pois Jesus não foi mulher, mas homem. Mas como todo o ser humano, ele incluía dentro de sua realidade também a dimensão feminina que ele expressou de uma forma admirável e verdadeiramente revolucionária para o seu tempo. Todo o dinamismo de Jesus, a sua coragem em enfrentar as oposições e a forma como encarou a própria morte, revelam a dimensão masculina dele, presente também na mulher, mas de forma distinta. A faceta feminina de Jesus expressa-se em aspectos essenciais como a ternura da existência humana, o cuidado, a misericórdia, a sensibilidade ao mistério da vida, particularmente para com os mais vulneráveis e excluídos e a interioridade na oração,
Os relatos dos Evangelhos apresentam-nos que Jesus como alguém que havia integrado a "anima" (dimensão feminina) dentro do seu "animus"(dimensão masculina). Primeiramente elabora uma relação profundamente humana e terna para com as mulheres que passam pelo seu caminho, várias das quais são suas discípulas (Lc. 10,38-42). Ele considera as mulheres como iguais em dignidade aos homens, uma ideia então verdadeiramente revolucionária.
Sempre toma a defesa da mulher desamparada como a adúltera, a mulher sirio-fenícia que suplica ajuda, a samaritana, a mulher corcunda e a que sofria de hemorragia.
Com atitudes bem femininas se verga sobre os pobres que encontra pelos caminhos; enche-se de compaixão face ao povo abandonado (Mc. 6,34), não esconde as lágrimas quando sabe do amigo Lázaro que morrera (Jo. 11,35). De forma muito feminina diz que quis juntar os filhos de Jerusalém como uma galinha reúne os pintainhos sob suas asas e eles não quiseram (Lc. 13,34).
Uma visão nova de Deus e de Jesus como seu enviado por excelência não pode deixar de ter repercussões na organização e na vivência das Igrejas, as quais devem ser cada vez mais comunidades inclusivas, nas quais mulheres e homens formem um discipulado de iguais, e contribuam no desenvolvimento de sociedades mais inclusivas, justas e solidárias.