quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

E vós, quem dizeis que Eu sou?

"Falar de Jesus Cristo não é antes de mais enunciar dogmas, mas sim contar uma história, uma experiência, a da comunhão com um Amor que nos atingiu. O facto de ser preciso repetir estas evidências significa que são ainda numerosos aqueles que vêm o Senhor como uma verdade abstrata e fazem do texto evangélico mera ilustração ou reservatório de provas. Não é por acaso que os exegetas estão a redescobrir as virtudes da narrativa. Façamos votos de que não sejam eles os únicos a tirar proveito disso.”
Assim escrevia o padre jesuíta Jean-Noël Aletti, um teólogo francês, na sua obra “Voltar a falar de Jesus Cristo”,
Com efeito, no Credo, as afirmações sobre Jesus Cristo parecem "esquecer" o que lhe aconteceu entre o nascimento e a morte, paixão eressurreição.  
Neste contexto, não estaremos a esquecer-nos do mais importante? Vem aqui a ideia cada vez mais generalizada de que é necessário regressar ao Jesus da História e à narrativa que os Evangelhos, principal testemunho da sua vida e da sua mensagem, para que o Cristo da Fé (de acordo com a célebre distinção de Rudolph Bultmann) e aquilo que o Cristianismo proclama sobre ele se torne mais claro, mais compreensível, e existencialmente mais significativo para os homens e as mulheres do nosso tempo.  
Segundo o filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969), um dos principais pensadores do século XX, Jesus foi um dos quatro mestres fundamentais da História da Humanidade, juntamente com Buda, Confúcio e Sócrates. 
Em grande parte graças ao seu contributo, a Humanidade passou de uma consciência predominantemente mítica a uma consciência reflexiva, de uma consciência submersa na coletividade a uma consciência de identidade pessoal  Foi neste contexto que se deu uma profunda transformação espiritual, com o aparecimento das religiões universais e da filosofia e uma mudança na conceção do Divino, baseada em três princípios fundamentais: o monismo, o monoteísmo e a racionalidade critica.  
 Atualmente, pode-se afirmar que existem duas grandes concepções sobre a figura de Jesus: uma cristologia "a partir de cima", baseada na cultura greco-romana, que utiliza conceitos como "encarnação", "união hipostática" e "consubtancual ao Pai", e uma cristologia "a partir de baixo", baseada nas Escrituras bíblicas, que parte do Jesus histórico e tenta desvendar o mistério da sua pessoa. 
Jesus nunca se declarou a si próprio como Deus. Os Evangelhos relatam uma conversa interessante entre Jesus e um jovem (Mateus 19:16-22; Marcos 10:17-22; Lucas 18:18-23). Quando este jovem chamou Jesus de “Bom Mestre”, ele respondeu: "Porque me chamas bom? Ninguém é bom, senão um, que é Deus". 
A sua profunda humanidade manifestou-se na sua fé em Deus ena consciência de que tinha uma missão de relevância fundamental para a Humanidade.
Após a experiência pascal, na qual Deus ressuscitou Jesus de entre os mortos, que os discípulos compreenderam e testemunharam que ela é o Cristo e o Messias de Deus. Recordaram  que as suas palavras, as suas ações e a sua vida terrena exprimia uma relação de comunhão com Deus, que ele chamava de Abba, a palavra aramaica que significa “”Pai querido” ou “Papá”.
Através da vida e da mensagem de Jesus, as primeiras comunidades cristãs viveram a experiência de que Deus é Amor e acreditaram nele como o Filho de Deus, tendo em conta que a expressão “Deus” refere-se sempre ao Pai.  
Na sua pessoa, manifestou-se um Deus que ama incondicionalmente os homens e as mulheres de todos os tempos e de todos os lugares. Um Deus que ama a sua Criação e todos os seres existentes no Universo. Um Deus que tem uma predileção especial para os fracos, os excluídos e as vitimas deste mundo.  
Assim, Jesus mostrou que devemos agir como Deus: amar-nos, lutar pela dignidade da pessoa humana, promover a justiça e a fraternidade e sermos compassivos uns com os outros. 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Jesus, o profeta reformador: a visão judaica de Géza Vermes


Um dos maiores especialistas contemporâneos sobre a História de Jesus e do Cristianismo primitivo foi, indiscutivelmente, Géza Vermes, que faleceu no dia 8 de maio do presente ano.
Nasceu em Makó, na Hungria, em 1924, filho de pais judeus, que se converteram ao Cristianismo quando Vermes tinha sete anos, que foi igualmente batizado. Durante a Segunda Guerra Mundial, os seus pais foram vítimas do Holocausto nazi.
Entretanto, Géza Vermes entra no seminário. Quando alcança os 18 anos, em 1942, os judeus não eram aceites nas universidades na Hungria, cujo regime autoritário então vigente era aliado da Alemanha nazi.
Após o final da guerra, é ordenado padre da Igreja Católica e prossegue os seus estudos bíblicos, inicialmente em Budapeste e posteriormente na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, onde apresentou a tese de doutoramento sobre os manuscritos do Mar Morto, que constitui ainda hoje uma obra de referência nesta matéria.
Em 1957, abandona o sacerdócio e a Igreja Católica, regressando ao Judaísmo. Contudo, a figura de Jesus continuou a desempenhar um lugar fundamental na sua atividade académica e na sua vivência em geral.
Passou a viver na Grã Bretanha, onde se tornou professor da Universidade de Newcastle upon Tyne, tendo posteriormente integrado a Universidade de Oxford. Em 1970, tornou-se membro da Sinagoga Judaica Liberal de Londres, mas insistiu que não se tinha convertido, mas que cresceu a partir do Cristianismo.
Vermes descreve Jesus como um homem santo judeu do século I da nossa era, que não chegou verdadeiramente a abandonar as estruturas mentais e religiosas do judaísmo do seu tempo. A sua finalidade não era romper com Israel, criando uma nova religião. Jesus foi essencialmente um reformador carismático. Não fez do seu messianismo uma bandeira política nem passou para a resistência armada aos poderes instituídos. Era um “homem de Deus”, um pouco heterodoxo, mas inserido no judaísmo popular da sua época.
Segundo Vermes, o cristianismo posterior a Jesus é uma religião respeitável, mas não acrescente nada de essencial ao judaísmo mais autêntico que ele preconizou e vivenciou.
Vermes acredita que era possível recuperar o evangelho autêntico de Jesus, isto é, a mensagem original transmitida aos seus seguidores.
A este respeito, é importante analisar um texto de Géza Vermes, exposto no livro “Quem é Quem no Tempo de Jesus”: 
“Por fim, o Deus de Jesus é um pai amoroso. Ele faz o Sol nascer e a chuva cair para o bem de todos; proporciona aos seus filhos o pão de cada dia. Protege os mais pequenos da tentação e liberta-os do mal. Perdoa-os a todos, até mesmo aos publicanos e às prostitutas, e dá-lhes a boas vindas no seu Reino. Em suma, a aspereza e a severidade são estranhas a esta representação de Deus de Jesus. Isto implicaria que ele se sentia otimista no que respeita ao êxito final da sua missão. Ele esperava dos filhos de Deus que estes encontrassem a sua própria salvação no Reino do seu Pai celestial.
A religião que Jesus ensinava era positiva e esperançosa.(…) Em oposição a esta religião teocêntrica, escatológica e existencial, pregada e praticada por Jesus, está o Cristianismo cristocêntrico, que dá ênfase às proezas sobrenaturais de um Deus encarnado. O Cristianismo não insiste, primariamente, que os homens se esforcem por obedecer aos ensinamentos e seguir o exemplo de Jesus. Caracteriza-se antes pela crença no poder redentor do sofrimento, da morte e da ressurreição de Jesus, qual ser humano deificado. Esta é uma nova religião, construída não sobre o evangelho simples e prático do profeta de Nazaré, mas sobre a visão mística do autor do Quarto Evangelho e de S. Paulo, a qual tem vindo a ser desenvolvida, ao longo dos dias de hoje, pelas várias Igrejas, até à consecução de um Cristianismo sazonado”.

O Jesus iluminado, segundo Deepak Chopra.


O Natal constitui uma oportunidade privilegiada para abordar a relevância de Jesus no percurso histórico e espiritual da Humanidade. No presente texto, será analisada a visão de Jesus segundo Deepak Chopra.
Deepak Chopra nasceu em Nova Deli, em 22 de outubro de 1947, vinte e um dias após a proclamação da independência da Índia em relação ao Império Britânico. Desde muito cedo, quis ser escritor. Por influência do pai, cardiologista, enveredou pela medicina. Já em Harvard, onde estudou, o seu trabalho ultrapassou as fronteiras da medicina convencional, apostando numa reformulação dos conceitos de saúde e das relações entre o corpo, a mante e o espírito. Autor de diversos livros, é internacionalmente reconhecido como um das principais personalidades na área do desenvolvimento pessoal e da espiritualidade. Em 1999, a revista norte-americana Time incluiu-o na sua lista das 100 personalidades mais marcantes do século XX, chamando-lhe “poeta e profeta das medicinas alternativas”.
Ao longo da sua extensa obra, entre outros temas, Deepak Chopra tem prestado uma atenção particularmente especial à figura de Jesus.
Segundo Chopra, podemos encontrar três dimensões de Jesus: primeiro, o Jesus histórico, que viveu há dois mil anos; em seguida, Jesus, o Filho de Deus, tal como é representado pelo Cristianismo; e finalmente, o terceiro Jesus, o mestre e guia espiritual, que alcançou a iluminação divina, cuja mensagem envolve a Humanidade como um todo.
Na sua perspetiva, o menosprezo pelo Jesus iluminado debilitou de forma profunda o Cristianismo e a espiritualidade humana em geral.
Para Chopra, por mais singular que seja a sua existência, fazer de Jesus o único Filho de Deus deixa o restante da Humanidade desamparada. Um grande abismo separa a santidade de Jesus da mediocridade do resto da Humanidade.
Embora milhões de cristãos aceitem essa separação, Chopra considera que ela não precisa de existir.
Por isso, ele coloca a seguinte questão: E se Jesus desejasse que cada um de nós desfrutasse a mesma comunhão com Deus alcançada por ele?
A sua conceção sobre Jesus parte da premissa de que esse era o seu desejo. Segundo Chopra, a comunhão de Jesus com Deus foi um processo que ocorreu dentro de sua mente.Do ponto de vista de Buda ou dos antigos rishis (profetas) indianos, Jesus atingiu a iluminação.
Ele queria ensinar-nos a atingir uma consciência mais elevada, e não apenas ser um exemplo glorioso dela. Jesus disse aos seus discípulos que eles poderiam fazer tudo o que ele fazia e mais. Declarou que eles eram a “luz do mundo”, o mesmo termo que usava para si mesmo.
Apontava para o Reino de Deus como um estado de graça eterno, não como um lugar distante no espaço e no tempo.
Em suma, o Jesus iluminado, que foi menosprezado nos dois últimos milénios acaba por ser o mais importante para os seres humanos do terceiro milénio.
De acordo com Chopra, a sua busca pela salvação ecoa nos corações de todos e de cada um de nós.
Pode-se concordar ou não com as ideias partilhadas por Deepak Chopra, mas não devemos ser indiferentes.
As visões sobre Jesus são necessariamente plurais. No seu livro “Os rostos de Jesus – Uma revelação”, o padre José Tolentino Mendonça escreveu: “não é a monodia que nos permite captar Jesus, mas a polifonia, com as suas variantes, os seus contrastes, os seus silêncios e singularidades”.  
Por conseguinte, as ideias de Deepak Chopra podem ser consideradas como um contributo relevante para compreendemos a riqueza de Jesus, ponto de cruzamento entre o humano e o divino, que marcou e marca a História da Humanidade.


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A relevância do cristianismo na contemporaneidade

Christ of Saint John of the Cross.jpg


Em muitas conversas, escutam-se inquietações sobre o Cristianismo. Na visão de muitas pessoas, seria difícil confiar numa instituição religiosa, isto é, na Igreja, que estaria associada a tudo aquilo que aprenderam ou experimentaram ser opressivo ou corrupto; assim como seria impossível acreditar em fórmulas de fé que contradizia o que conheciam sobre a mensagem de Jesus. Para eles, o que compreendiam ser a fé cristã tornara-se irrelevante.
Aquele tipo de inquietação não me é estranha- Com efeito, eles não estão sozinhos quando passam por aquelas correntezas de sentimentos de dúvidas e incertezas. Esses sentimentos são naturais e necessários ao nosso crescimento intelectual e espiritual.
Para que eu seja o mais objetivo possível, deixem-me declarar que confio plenamente na relevância da fé cristã para o mundo contemporâneo. O Cristianismo oferece uma narrativa do sagrado  capaz de construir uma corrente de relações entre a pessoa humana e Deus , tendo moldado positivamente a vida de milhares de milhões de pessoas há dois mil anos. 
Em termos mais seculares, por exemplo, é fácil esquecermos que as nossas instituições ocidentais de direitos humanos, cidadania, liberdade, democracia, entre outras, emergem de um contexto cristão. A modernidade fez com que, ingenuamente, desassociássemos essas instituições da herança greco-romana-abraâmica na qual foram moldadas. Ouso supor que aqueles traços ocidentais só vieram à tona da forma e no tempo no qual passaram a existir por haverem emergido em sociedades cristãs. O que teria ocorrido se o Cristianismo não tivesse cruzado com o pensamento greco-romano no Mediterrâneo?
Penso que o problema que alguns de nós encontramos para achar sentido no Cristianismo é o de termos sido formados para associar a fé a crenças dogmáticas e a definições objetivas duma suposta realidade teológica.
Acostumamo-nos a declarações dogmáticas, mas não a descobrir novos níveis de sentido para essas declarações. Deus torna-se um problema, então, não porque Deus seja um problema, mas simplesmente porque fomos treinados a compreender o Divino como se fora um monarca absoluto ou uma equação matemática. A “verdade”, nesse sentido que aprendemos a dar ao Cristianismo, é algo que pode ser equacionado, metrificado, verificado, quantificado – é, enfim, um absoluto. Então, se na minha experiência me leva a compreensões que contradigam essa “verdade”, Deus e, consequentemente, o Cristianismo deixam de fazer sentido e tornam-se irrelevantes.
Existem dois aspetos relevantes a ter em conta no Cristianismo.  
Em primeiro lugar, Antes de mais, Jesus nunca quis uma Igreja enquanto institutição. A palavra grega ekklésia significa comunidade. Jesus foi o inspirador de uma comunidade espiritual de homens e de mulheres que se reu­niam para viver a experiência de Deus e do seu Reino. Nessa comu­nidade, os homens e as mulheres tinham de início papéis absolu­tamente equivalentes.
Em segundo lugar, a coisa relevante sobre a tradição cristã é que ela, na verdade, são várias tradições. Não há algo que possamos chamar de Cristianismo único.
Com isso quero dizer que há várias maneiras diferentes de compreender a mensagem cristã.
Posso reler a narrativa cristã a partir de diferentes posições no espectro teológico, enxergando Deus duma perspectiva nova, descobrindo um novo nível de sentido para uma declaração atribuída a Jesus ou a um dos seus discípulos , por exemplo. Assim, não são os detalhes minuciosos que passam a ter relevância, mas a Realidade Divina para a qual a mensagem das Escruturas aponta.
O Cristianismo é relevante para mim por ser um testemunho do caminho do amor e da compaixão. Esse caminho é o que tenho chamado de sola caritas – o amor, a caridade, a compaixão é o único caminho que nos leva a Deus. Dizemos que Jesus é esse caminho porque ele nos aponta – na verdade, exige que sigamos – o caminho do amor e da compaixão; assim, seguir a Jesus é seguir o caminho que ele percorreu: é viver pela presença do Deus aqui e agora, é ser essa presença para outras pessoas. Para mim, não outra mensagem mais relevante que essa, já que o seu chamamento não é para que eu largue minhas dúvidas ou inseguranças, mas sim, para que eu faça, para que eu ame, para que eu “caminhe”.
Não posso definir Deus. Não consigo encontrar uma maneira suficientemente ampla para falar sobre essa Realidade dentro da qual temos a nossa existência. Também não consigo estar sempre acima da dúvida e dos questionamentos, quando presencio o sofrimento e a dor dos outros seres humanos e os meus  próprios sofrimentos. Mas escolho pensar que se há verdade, essa tem de se materializar no nosso dia a dia, por isso tenho de trazer Deus para dentro da realidade do mundo. Deus como a Fonte do Universo, da Vida e do Amor revelada por diversos mensageiros ao longo da História e por Jesus de uma forma especial. O mandamento de amor e de compaixão – e a vida daqueles cristãos celebrados como santos é um exemplo disso – torna-se o padrão por meio do qual avalio o valor da mensagem cristã; uma mensagem que escolho interpretar como um caminho, um modo de vida.

domingo, 8 de setembro de 2013

Maria: uma visão para o nosso tempo

'Kissing the Face of God', by Morgan Weistling

No dia 8 de Setembro, o calendário litúrgico cristão assinala o nascimento de Maria, mãe de Jesus. Trata-se de uma oportunidade privilegiada para uma reflexão sobre o papel de Maria no Cristianismo contemporâneo..
A História ajuda-nos a compreender as diferenças entre as diversas confissões cristãs. Os caminhos da Igreja bifurcaram-se ao longo dos séculos e com ela a percepção sobre o papel de Maria . Nas Igrejas do Oriente, a devoção mariana começa no século III, enquanto no Ocidente torna-se algo mais relevante no século IV, mas foi a partir do século X que esta devoção teve uma expressão mais significativa na religiosidade popular e na liturgia. Mais tarde, com a Reforma Protestante, há uma ruptura com a veneração de Maria professada pela Igreja Católica Romana.
O Concílio Vaticano II, após um longo debate, optou por integrar um capítulo sobre o papel de Maria na Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, criando condições para um diálogo ecuménico entre cristãos de diferentes confissões.
O documento conciliar fez vir à luz um rosto humano de Maria, revelando a Maria das Escrituras, a mulher de Nazaré que aceitou e testemunhou o chamamento de Deus. O papel de Maria foi posto no seu devido lugar, centrado no mistério de Cristo e da Igreja, intimamente unida a Cristo e a Igreja, ao mesmo tempo que muito próxima de Cristo, mas por outro lado unida a Igreja e como parte dela. 
O Concílio Vaticano II abriu um novo tempo no diálogo ecuménico, no qual a figura de Maria foi submetida a uma intensa releitura, com a recuperação do património de tradições teológicas e litúrgicas comuns.
Esse novo percurso tem sido enriquecido por estudos, diálogos, encontros locais e internacionais, com o envolvimento de cristãos de diversas confissões. 
De modo a abrir caminho para uma imagem de Maria adequado à realidade do século XXI, parecem importantes as seguintes linhas orientadoras: 
- Segundo o Novo Testamento, Maria constitui um ser plenamente humano e nada tem de um ser celeste. Maria é a mãe de Jesus. E não só. As Escrituras falam dos irmãos e das irmãs de Jesus. John P. Meier, possivelmente o maior especialista em exegese histórica dos evangelhos, escreve : "Se o historiador ou exegeta - deixando de lado a fé e a posterior doutrina da Igreja - for solicitado a emitir um julgamento sobre o Novo Testamento (...), encarados apenas como fontes históricas, a opinião (...) é que os irmãos de Jesus eram legítimos."Sendo mulher e mãe, ela manifesta a plena humanidade de Jesus, que não contradiz a fé de que a existência de Jesus se explica, em última instância, a partir de Deus. A este respeito, é importante referir que o próprio Joseph Ratzinger, o papa emérito  Bento XVI escreveu em 1969: "A filiação divina de Jesus não se baseia (...) no facto de Jesus não ter pai humano; a doutrina da divindade de Jesus não seria posta em causa se Jesus fosse o fruto de um casamento normal."
- Maria constitui um modelo de fé. As palavras de Maria no Novo Testamento revelam uma espiritualidade profunda e conservam na atualidade todo o sentido. Maria louva Deus que derrubou os poderosos e exaltou os humildes. O seu papel foi relevante na forma revolucionária como Jesus encarava as mulheres e o seu papel espiritual e social. Jesus foi um grande defensor da dignidade feminina, convidando inclusive mulheres para o seu círculo mais intimo de discipulos. Recorde-se o papel fundamental de Maria Madalena e de outras mulheres nas comunidades primitivas.
Maria, ou melhor, Myriam, uma mulher judia, que foi esposa e mãe, que sofreu por Jesus e com ele. Mas que nunca perdeu a esperança. Que conhecemos por causa de Jesus. Porque cada criança é um espelho da sua mãe. Partilhando em tudo a nossa condição humana, mas que contribuiu para transformar a História.  

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Eu tenho um sonho



Há cinquenta anos, Martin Luther King, Jr. proferiu um dos discursos mais significativos da História da Humanidade. 
O discurso de Martin Luther King, Jr., foi pronunciado na escadaria do Monumento ao presidente Abraham Lincoln, em Washington, D.C., tendo sido escutado por mais de 250.000 pessoas, reunidas na capital dos Estados Unidos da América, no âmbito da "Marcha para Washington por Emprego e Liberdade". 
A marcha foi um grande manifestação em prol da defesa da igualdade de direitos entre os todos os cidadãos, independentemente da sua cor da pele,  exigindo igualmente das instituições políticas federais um compromisso mais firme no reconhecimento desses mesmos direitos, sobretudo nos Estados do sul, onde os afro-americanos eram considerados como pessoas de seguida categoria. 
A marcha foi realizada num contexto particularmente tenso.Havia muita ansiedade, medo e esperança também. Ansiedade, porque os manifestantes não sabiam se iam  conseguir chegar a Washington e sair de lá. Medo, porque muitos dos manifestantes tiveram de atravessar fronteiras de Estados que defendiam claramente a segregação e a discriminação. Washington, D.C. estava virtualmente em estado de sítio. O Governo Federal tinha receio de distúrbios. Pela primeira vez desde a abolição da Lei Seca em 1933, foram fechados todos os estabelecimentos de bebidas alcoólicas. As forças policiais tinham turnos de 18 horas. O Exército foi mobilizado.
E, apesar de tudo isto, nasceu um movimento magnífico de pessoas de diversas etnias, condições sociais e confissões religiosas, que se juntaram pacificamente, que se inspiraram umas às outras, que proclamaram juntas a dignidade fundamental da pessoa humana. 
A marcha teve consequências duradouras. Em 1964, o Congresso dos Estados aprovou a Lei dos Direitos Civis, e no ano seguinte, a Lei sobre o Direito de Voto, consagrando a igualdade de direitos civis e políticos. 
Em 1964, Martin Luther King, Jr. foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz. 


Discurso “I Have a Dream”

Há cem anos, um grande americano, sob cuja sombra simbólica nos encontramos, assinava a Proclamação da Emancipação. Esse decreto fundamental foi como um raio de luz de esperança para milhões de escravos negros que tinham sido marcados a ferro nas chamas de uma vergonhosa injustiça. Veio como uma aurora feliz para terminar a longa noite do cativeiro. Mas, cem anos mais tarde, devemos enfrentar a realidade trágica de que o Negro ainda não é livre.
Cem anos mais tarde, a vida do Negro é ainda lamentavelmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação. Cem anos mais tarde, o Negro continua a viver numa ilha isolada de pobreza, no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o Negro ainda definha nas margens da sociedade americana, estando exilado na sua própria terra.
Por isso, encontramo-nos aqui hoje para dramaticamente mostrarmos esta extraordinária condição. Num certo sentido, viemos à capital do nosso país para descontar um cheque. Quando os arquitectos da nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de independência, estavam a assinar uma promissória de que cada cidadão americano se tornaria herdeiro.
Este documento era uma promessa de que todos os homens veriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à procura da felicidade. É óbvio que a América ainda hoje não pagou tal promissória no que concerne aos seus cidadãos de cor. Em vez de honrar este compromisso sagrado, a América deu ao Negro um cheque sem cobertura; um cheque que foi devolvido com a seguinte inscrição: "saldo insuficiente". Porém nós recusamo-nos a aceitar a ideia de que o banco da justiça esteja falido. Recusamo-nos a acreditar que não existam recursos suficientes nos grandes cofres de oportunidades deste país.
Por isso viemos aqui cobrar este cheque - um cheque que nos dará quando o recebermos as riquezas da liberdade e a segurança da justiça. Também viemos a este lugar sagrado para lembrar à América da clara urgência do agora. Não é o momento de se dedicar à luxuria do adiamento, nem para se tomar a pílula tranquilizante do gradualismo. Agora é tempo de tornar reais as promessas da Democracia. Agora é o tempo de sairmos do vale escuro e desolado da segregação para o iluminado caminho da justiça racial. Agora é tempo de abrir as portas da oportunidade para todos os filhos de Deus. Agora é tempo para retirar o nosso país das areias movediças da injustiça racial para a rocha sólida da fraternidade.
Seria fatal para a nação não levar a sério a urgência do momento e subestimar a determinação do Negro. Este sufocante verão do legítimo descontentamento do Negro não passará até que chegue o revigorante Outono da liberdade e igualdade. 1963 não é um fim, mas um começo. Aqueles que crêem que o Negro precisava só de desabafar, e que a partir de agora ficará sossegado, irão acordar sobressaltados se o País regressar à sua vida de sempre. Não haverá tranquilidade nem descanso na América até que o Negro tenha garantido todos os seus direitos de cidadania. 
Os turbilhões da revolta continuarão a sacudir as fundações do nosso País até que desponte o luminoso dia da justiça. Existe algo, porém, que devo dizer ao meu povo que se encontra no caloroso limiar que conduz ao palácio da justiça. No percurso de ganharmos o nosso legítimo lugar não devemos ser culpados de actos errados. Não tentemos satisfazer a sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do ódio. 
Temos de conduzir a nossa luta sempre no nível elevado da dignidade e disciplina. Não devemos deixar que o nosso protesto realizado de uma forma criativa degenere na violência física. Teremos de nos erguer uma e outra vez às alturas majestosas para enfrentar a força física com a força da consciência. 
Esta maravilhosa nova militância que engolfou a comunidade negra não nos deve levar a desconfiar de todas as pessoas brancas, pois muitos dos nossos irmãos brancos, como é claro pela sua presença aqui, hoje, estão conscientes de que os seus destinos estão ligados ao nosso destino, e que sua liberdade está intrinsecamente ligada à nossa liberdade. 
Não podemos caminhar sozinhos. À medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de marcharmos em frente. Não podemos retroceder. Há quem pergunte aos defensores dos direitos civis: "Quando é que ficarão satisfeitos?" Não estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos incontáveis horrores  da brutalidade policial. Não poderemos estar satisfeitos enquanto os nossos corpos, cansados das fadigas da viagem, não conseguirem ter acesso a um lugar de descanso nos motéis das estradas e nos hotéis das cidades. Não poderemos estar satisfeitos enquanto a mobilidade fundamental do Negro for passar de um gueto pequeno para um maior. Nunca poderemos estar satisfeitos enquanto um Negro no Mississipi não pode votar e um Negro em Nova Iorque achar que não há nada pelo qual valha a pena votar. Não, não, não estamos satisfeitos, e só ficaremos satisfeitos quando a justiça correr como a água e a rectidão como uma poderosa corrente.
Sei muito bem que alguns de vocês chegaram aqui após muitas dificuldades e tribulações. Alguns de vocês saíram recentemente de pequenas celas de prisão. Alguns de vocês vieram de áreas onde a vossa procura da liberdade vos deixou marcas provocadas pelas tempestades da perseguição e sofrimentos provocados pelos ventos da brutalidade policial. Vocês são veteranos do sofrimento criativo. Continuem a trabalhar com a fé de que um sofrimento injusto é redentor.
Voltem para o Mississipi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para a Luisiana, voltem para as bairros de lata e para os guetos das nossas modernas cidades, sabendo que, de alguma forma, esta situação pode e será alterada. Não nos embrenhemos  no vale do desespero.
Digo-lhes, hoje, meus amigos, que apesar das dificuldades e frustrações do momento, ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Tenho um sonho que um dia esta nação levantar-se-á e viverá o verdadeiro significado da sua crença: "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais".
Tenho um sonho que um dia nas montanhas rubras da Geórgia os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos proprietários de escravos poderão sentar-se à mesa da fraternidade.
Tenho um sonho que um dia o estado do Mississipi, um estado deserto, sufocado pelo calor da injustiça e da opressão, será transformado num oásis de liberdade e justiça.
Tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pela qualidade do seu caractér.
Tenho um sonho, hoje.
Tenho um sonho que um dia o estado de Alabama, cujos lábios do governador actualmente  pronunciam palavras de ... e recusa, seja transformado numa condição onde pequenos rapazes  negros, e raparigas negras, possam dar-se as mãos com outros pequenos rapazes brancos, e raparigas brancas, caminhando juntos, lado a lado, como irmãos e irmãs.
Tenho um sonho, hoje.
Tenho um sonho que um dia todo os vales serão elevados, todas as montanhas e encostas serão  niveladas, os lugares ásperos serão polidos, e os lugares tortuosos serão endireitados, e a glória do Senhor será revelada, e todos os seres a verão, conjuntamente.
Esta é nossa esperança. Esta é a fé com a qual regresso ao Sul. Com esta fé seremos capazes de retirar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé poderemos transformar as dissonantes discórdias de nossa nação numa bonita e harmoniosa sinfonia de fraternidade. Com esta fé poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, ir para a prisão juntos, ficarmos juntos em posição de sentido pela liberdade, sabendo que um dia seremos livres.
Esse será o dia quando todos os filhos de Deus poderão cantar com um novo significado: "O meu país é teu, doce terra de liberdade, de ti eu canto. Terra onde morreram os meus pais, terra do orgulho dos peregrinos, que de cada localidade ressoe a liberdade".
E se a América quiser ser uma grande nação isto tem que se tornar realidade. Que a liberdade ressoe então dos prodigiosos cabeços do Novo Hampshire. Que a liberdade ressoe das poderosas montanhas de Nova Iorque. Que a liberdade ressoe dos elevados Alleghenies da Pensilvania!
Que a liberdade ressoe dos cumes cobertos de neve das montanhas Rochosas do Colorado!
Que a liberdade ressoe dos picos curvos da Califórnia!
Mas não só isso; que a liberdade ressoe da Montanha de Pedra da Geórgia!
Que a liberdade ressoe da Montanha Lookout do Tennessee!
Que a liberdade ressoe de cada Montanha e de cada pequena elevação do Mississipi.
Que de cada localidade, a liberdade ressoe.
Quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar de cada vila e cada aldeia, de cada estado e de cada cidade, seremos capazes de apressar o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras da antiga canção negra: "Liberdade finalmente! Liberdade finalmente! Louvado seja Deus, Todo Poderoso, estamos livres, finalmente!"