Ao
proferir contra Jesus a condenação à morte por crucificação, o prefeito romano
Põncio Pilatos, o alto representante do imperador Tibério na Judeia, deu um
desfecho trágico, sem que suspeite, ao maior processo judicial de toda a
História da Humanidade.
A responsabilização
absurda e trágica do povo judeu
De uma
forma errónea e perversa, o povo judeu foi responsabilizado pela morte de
Jesus. Não era ele quem gritava. “Seja crucificado”. Era uma multidão de
agitadores manipulados pelos inimigos de Jesus.
A
grande maioria dos judeus, quer os habitantes de Jerusalém, quer as várias centenas
de milhar de peregrinos que visitavam a Cidade Santa por ocasião da Páscoa,
vindos do resto da Palestina e dos diversos locais da diáspora judaica, não
teve conhecimento da prisão de Jesus, ou quando se informou, já era demasiado
tarde, para encetar qualquer manifestação em seu favor, que seria certamente
reprimida pelas tropas romanas.
Há que
recordar que foi o povo judeu que tinha aclamado entusiasticamente Jesus como
“Filho de David” e “Bendito aquele que vem em nome do Senhor”, quando este
entrou em Jerusalém, montado num jumentinho, o símbolo da humildade e da
mansidão.
O
saudoso papa João XXIII lembrou aos cristãos de todo o mundo que era um grave
erro contra a verdade histórica e contra a caridade fraterna tratar os judeus
como um povo “deicida”, uma acusação que causou perseguições, massacres e,
em última instância, este acontecimento inominável que recordamos como a Shoah ou o
Holocausto.
O
conflito com os poderes terrenos
A
prisão e a morte de Jesus foi o culminar de um conflito que ele teve com os
poderes terrenos então vigentes na Palestina. A mensagem de amor e de
libertação que Jesus proclamava e praticava estava nos antípodas da postura de
opressão e de manipulação exercida por aqueles que detinham o poder.
Com
efeito, é incorreto falar de oposição de Jesus ao judaísmo ou de ruptura com a sua identidade
judaica.
Quando os Evangelhos canónicos foram escritos, nas últimas décadas do
século I E.C., deve-se ter em conta que eles projetam sobre a vida de Jesus os
conflitos existentes entre os cristãos, de origem e judaica ou gentia, e o
judaísmo rabínico, sobretudo a partir do fatídico ano 70, quando as legiões de
Roma destruíram Jerusalém e o seu Templo, na sequência da guerra judaico-romana
(66-70 E.C.).
Certamente, Jesus tinha inimigos judeus, aliás poderosos. Aliás, os
conflitos intra-judaicos não eram inéditos. Merecem menção os casos de muitos
profetas do Antigo Testamento e do Mestre de Justiça da comunidade essénia de
Qumram, que enfrentaram os poderes político e religioso e, consequentemente,
foram perseguidos.
Sem dúvida, a atitude do movimento de Jesus diferia de outros grupos
judaicos da época. Jesus anuncia um Deus de Amor, acolhedor e próximo da
Humanidade, o que não ia propriamente de encontro às conceções exclusivistas, legalistas e ritualistas de muitos dos seus contemporâneos.
Recorrendo a um esforço de síntese, considera-se que no conflito de
Jesus com os poderes instituídos, podem ser distinguidos três aspetos.
Em primeiro lugar, a tensão na Galileia entre a cidade e o campo, entre as
elites urbanas e a população rural, nomeadamente os camponeses e os artesãos. A
renovação da vida social e espiritual que Jesus se identificou com o Reino de
Deus teve grande eco na população rural da Galileia então um estado vassalo
governado por Herodes Antipas..Jesus é muito crítico da elite urbana, que juntamente
com os herodianos e os romanos, promoviam um novo tipo de civilização, de
características urbanas e greco-romanas, à custa da pobreza e da marginalização da grande maioria da população.
Considero que isso explica por que Jesus, que conhecia bem as cidades, devido à sua experiência em Séforis, evitou visitar as principais cidades durante o seu
ministério, com exceção de Jerusalém, a Cidade Santa do judaísmo.
Em segundo lugar, merece menção o conflito com a aristocracia sacerdotal,
composta por saduceus, que dominava o Tempo de Jerusalém, e alguns sectores de
fariseus, cujos desvios religiosos e apego ao poder Jesus denunciou. O
historiador judaico-romano Flávio Josefo escreveu os que os saduceus eram “mais
cruéis que quaisquer outros judeus”. Já foi dito que entre o povo judeu, em geral, Jesus era muito popular. E tinha também amigos em cargos
importantes, incluindo no próprio Sinédrio, a principal instituição política e
religiosa do judaísmo.
O que se costuma designar de “purificação do Templo" foi visto como
um desafio inaceitável pelos sumos sacerdotes. Foi a gota de
água que fez transbordar o copo e, provavelmente, desencadeou os eventos que
levaram à morte de Jesus. Para compreender isso, deve-se ter em conta que o
Templo tinha um papel central de cariz religiosa, política e económica Além de ser o centro espiritual do judaísmo mundial, cujas comunidades iam da Península Ibérica à Índia, o Templo era uma enorme fonte de rendimentos para a élite sacerdotal.
Os Evangelhos relatam um julgamento de Jesus perante o plenário do Sinédrio
e uma reunião conspiratória na qual foi decidida a prisão e a morte de Jesus. De
acordo com muitos especialistas , a reunião do
plenário do Sinédrio e a proclamação que Jesus aí terá proferido são construções teológicas das comunidades cristãs. Contudo,
existem dados que mostram que houve um julgamento de Jesus perante as
autoridades judaicas, nomeadamente perante os sumos sacerdotes Anás e Caifás e
os seus adeptos. Além disso, existe fundamento histórico na decisão da
aristocracia sacerdotal em eliminar Jesus e na memória de uma reunião
conspiratória para realizar este propósito. Porém, provavelmente não houve uma reunião
formal do plenário do Sinédrio, que não podia reunir-se de noite, de acordo com
a lei judaica.
Por fim, mas não menos importante, será focado o relacionamento com as
autoridades romanas.
Há uma tendência exegética importante que considera que os Evangelhos
canónicos têm uma tendência para menorizar o papel dos romanos na condenação e
morte de Jesus
Contudo, a proclamação do Reino de Deus tinha, necessariamente, uma ressonância de
crítica sociopolítica e de denúncia da ordem imperial que não podia ser indiferente aos romanos.
Não há dúvida também que a decisão de crucificar Jesus foi tomada pelo
prefeito romano, conforme está indicado pelo uso da cruz, que era uma forma de
execução romana.
Jesus foi considerado como revolucionário e perigoso. Jesus tinha
mobilizado as massas populares, tinha suscitado expetativas messiânicas e
muitos judeus consideravam-no como o Messias legitimo, tanto mais que era ele
descendente do rei David.
Em todo o caso, existia uma forte relação de cumplicidade e de colaboração
entre a alta aristocracia judaica e os romanos. É evidente que ambos colaboraram
estreitamente contra Jesus e a sua mensagem libertadora do Reino de Deus,
porque ambos os poderes se viram confrontados por ela.
Interpretação da morte de Jesus
Como se pode contatar, a morte de Jesus teve um caráter eminentemente
histórico. Foi o resultado dos conflitos provocados pela pregação e pela práxis
de Jesus, que chocaram com os interesses religiosos, políticos e económicos das
autoridades judaicas, bem com os interesses políticos do Império Romano que
dominava a Palestina do século I E.C. Não foi o efeito de uma necessidade imposta
por uma divindade ofendida pelo pecado da espécie humana, mas o corolário da
fidelidade radicalmente coerente de Jesus à mensagem do Reino de Deus como Fonte Universal de
Vida e de Amor, cujo conteúdo incomoda(va) os poderes instituídos.
Também se deve destacar o caráter libertador da morte de Jesus. A cruz de Jesus torna-se um juízo de Deus contra o poder dos poderosos que não agem guiados pela verdade, mas por interesses ilegítimos e egoístas; pela
arbitrariedade e pela opressão, esquecendo a promoção do bem comum e da
dignidade da pessoa humana.
A cruz de Jesus se concretiza, historicamente, nos crucificados pelo mal
existente no mundo, nos seres humanos que são vítimas das mais diversas formas
de violência e de exclusão. Abraçar a cruz de Jesus, como o próprio propõe a
cada um de nós, é assumir a solidariedade para com todos os seres humanos,
nomeadamente os que são vítimas, e laborar em prol de um mundo livre do medo e da
miséria.
Finalmente, a cruz de Jesus impele-nos a olhar para o interior mais
profundo de nós próprios. Como reagimos perante a exploração, a tortura, a pena
de morte, a guerra e tudo o que violenta a dignidade fundamental da pessoa
humana, criada à imagem e semelhança de Deus?
Não esqueçamos que sempre que um ser humano é humilhado, violentado,
torturado, condenado à morte ou executado, é Jesus que de novo é condenado,
ultrajado, flagelado, coroado de espinhos e morte na cruz.