8 de março de 415. Alexandria, Egito, então província do Império Romano do Oriente. Uma multidão de fanáticos atacou e matou de forma bárbara uma mulher. O seu nome era Hipátia, filósofa, matemática e astrónoma, uma das mulheres mais fascinantes da Antiguidade Clássica e da História da Humanidade.
Alexandria na época de Hipátia
Hipátia nasceu em 355 em Alexandria,
uma das maiores metrópoles do mundo de então, com um milhão de habitantes.
Fundada em 331 A:C. por Alexandre Magno, prestigiada pela Biblioteca, pelo Museu (um grande
centro filosófico e científico) e pelos seus templos. Mas também era um centro
da maior importância para o judaísmo e o cristianismo. Em Alexandria,
localizava-se a maior comunidade judaica fora da terra bíblica de Israel, na
qual foi feita a tradução das Escrituras Hebraicas (o Antigo Testamento) da
língua original para o grego, então a língua internacional por excelência. Por
seu turno, Alexandria acolhia também uma comunidade cristã forte e vigorosa,
merecendo destaque a célebre Escola Catequética de Alexandria, porventura o
principal centro de pensamento teológico do cristianismo dos primeiros
séculos.
Na sua qualidade de capital do Egito, uma das principais possessões romanas, era
governada por um prefeito nomeado diretamente pelo Imperador.
Em 395, com a morte do imperador
Teodósio, o Império Romano foi definitivamente dividido em dois: o o Império Romano do Ocidente, com capital em
Roma, e o Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla.
A vida e obra de Hipátia
Hipiatia foi criada num ambiente
marcado pela filosofia e pelas ideias. O seu pai, Théon, bibliotecário da
Biblioteca de Alexandria, era um estudioso do Museu, conhecido pelos filósofos
e cientistas ilustres, nomeadamente os seguintes: Euclides (360-295 A.C.) ,
Eratóstenes de Cirene (276-194 A.C.), Arquimedes de Siracusa (287-212A.C..), Apolónio de Perga (262-194 A.C.), Aristarco de Samos (310-230
A.C.), Hipsicles (190-120 A.C.), Héron de Alexandria (10-80), Nicómano (60-120), Menelau de
Alexandria (70-130), e Ptolomeu de Alexandria (90-168).
Teve uma formação multidisciplinar,
englobando filosofia, matemática, astronomia, religião, poesia, artes, oratória
e retórica.
Valorizando o ideal helenístico de uma
mente sã num corpo são, submetia-se quotidianamente a uma rigorosa disciplina
física.
Na sua juventude, esteve em Atenas, de
modo a aprofundar a sua formação na Academia, fundada por Platão. Destacou-se
pela dedicação para unificar a matemática de Diofanto com o neoplantonismo de
Amonio Sacas e Plotino, mediante a aplicação do raciocínio matemático ao
conceito neoplatónico do Uno, que se refere ao Divino, dado que a sua principal
característica é a indivisibilidade.
Hipátia detinha uma grande autoridade ética. As generalidades das fontes históricas
descrevem-na como um modelo de coragem ética, retidão, veracidade, dedicação
cívica e elevação intelectual. A virtude mais venerada nela pelos contemporâneos
era a sua sophrosyne, um estado de espírito caraterizado peto autoconhecimento,
que enquadrava tanto a sua conduta social como as suas qualidades interiores.
Manifestava-se através na moderação do modo da vida, na modéstia, e na
dignidade da atitude que mantinha tanto perante os seus alunos como perante os
que tinham posições de poder.
Hipátia valorizava o amor pela
sabedoria na sua diversidade e a liberdade de espírito. Daí ter na sua escola
alunos pagãos, cristãos e judeus. Entre os seus alunos cristãos, merecem ênfase
Sinésio, bispo de Plotemais, cidade situada na Cirenaica (atual Líbia) e
Orestes, prefeito de Alexandria.
Sinésio estabeleceu uma
correspondência frequente com Hipátia, à qual se dirigia como “minha mae, minha irmã e benfeitora
minha”.Através destas cartas, sabemos que
Hipátia desenvolveu alguns instrumentos usados na Física e na Astronomia, entre
os quais o hidrómetro. Sabemos também que desenvolveu estudos sobre a Álgebra
de Diofanto (“Sobre o Cânon Astronómico de Diofanto”), tendo escrito um tratado
sobre o assunto, além de comentários sobre os matemáticos clássicos, incluindo
Ptolomeu. Em parceria com o pai, escreveu um tratado sobre Euclides. Ficou
famosa por ser uma grande solucionadora de problemas matemáticos e filosóficos.
Focada no processo de aprofundamento e
transmissão da sabedoria, quando lhe perguntavam a razão por que não casara,
respondia que já era casada com a Verdade.
O caminho para a tragédia
Hipátia viveu numa época marcada por
transformações profundas, que marcaram decisivamente o percurso histórico da
Humanidade.
O reinado de Teodósio (379-395), o
último imperador a governar um Império Romano unido, marcou o auge da
transformação do cristianismo, que se tornou na religião oficial do Império, de uma forma cada vez mais exclusivista.
Em 24 de novembro de 380, Teodósio
promulgou o Edito de Tessalónica, que consagrou o cristianismo definido pelo
Concílio de Niceia como a única religião oficial. Com este diploma, a liberdade
religiosa prometida por Constantino através do Edito de Milão de 313 foi posta de
parte. Não foram somente as diversas formas de paganismo que foram ilegalizadas. As
próprias correntes do cristianismo que não se identificavam com a ortodoxia
definida em Niceia, como o gnosticismo e o arianismo, foram são marginalizadas.
Embora continue a ser tolerado, o estatuto jurídico do judaísmo foi
desvalorizado.
Estava dado o mote para promover a
intolerância, a autocracia e a perseguição das ideias consideradas adversas pelos
poderes instituídos.
Em 391, o templo de Serápis e a sua famosa biblioteca foram destruídos por uma multidão instigada pelo patriarca Teófilo.
Com a ascensão de Cirilo ao cargo de patriarca de Alexandria, em 412, a violência contra os pagãos, os judeus e os cristãos considerados heréticos ou dissidentes tornou-se cada vez mais frequente.
A comunidade judaica, constituída por 40.000 pessoas, foi expulsa, após um conjunto de incidentes violentos. Os cristãos que não concordavam com as ideias e as práticas de Cirilo também foram perseguidos, dentro e fora de Alexandria.
O prefeito imperial, Orestes, antigo de Hipátia, tentou restabelecer a ordem pública e enfrentou diretamente o cada vez mais poderoso patriarca. Frequentemente, procurava o conselho de Hipátia, nos assuntos governamentais, o que provocou a fúria de Cirilo contra a filósofa.
Em março de 415, uma multidão de monges apoiantes de Cirllo, conhecidos como parabolanos, atacaram Hipátia á porta de sua casa. Arrastaram-na para o interior de uma igreja, despiram-na e torturavam-na até à morte com conchas e pedaços de telha. Por fim, queimaram os seus restos mortais.
O legado
A vida filosófica de Alexandria não se
apagou completamente com a morte de Hipátia. Filósofos e cientistas continuaram os seus
estudos na Antiguidade tardia. Muitas mulheres dessa época dedicaram-se à filosofia,
e, entre elas, Sosípatra foi uma filósofa influente da Antiguidade tardia, que
ensinou filosofia em Pérgamo, na atual Turquia. No século V, muitas outras
pagãs e cristãs sábias viviam em Alexandria, entre as quais: a filósofa Asclepigénia,
filha de Plutarco; Edésia, filósofa e mãe de filósofos; Santa Teodora, Eugénia
e Santa Maria Egipcíaca.
Mas a morte de Hipátia foi um marco fortemente
negativo da História da Humanidade. Marcou o triunfo da intolerância contra a diversidade,
da autocracia contra a liberdade, da luz contra as trevas.
Na sua obra magistral “Cosmos”, Carl
Sagan analisa desta forma lúcida a morte de Hipátia e as suas trágicas consequências:
“Há cerca de 2.000 anos, emergiu uma
civilização cientifica esplêndida, na nossa História, e a sua base era
Alexandria. Apesar das grandes oportunidades de florescer, ela decaiu. A sua última
cientista foi uma mulher, considerada pagã. O seu nome era Hipátia. Com uma
sociedade conservadora a respeito do trabalho da mulher e do seu papel, com o
aumento progressivo do poder da Igreja, formadora de opiniões e conservadora quanto
às ciências e devido a Alexandria estar sob o domínio romano, após o
assassinato de Hipátia, em 415, essa biblioteca foi destruída. Milhares de preciosos documentos
dessa biblioteca foram em grande parte queimados e com ela todo o progresso
científico e filosófico da época”.
Um contemporâneo de Hipátia, o
filósofo Temístio de Pflagónia, tinha feito o seguinte pedido ao imperador
Teodósio: “Mesmo sendo um só o verdadeiro e grande juiz, o seu caminho até ele
não é único. Seria tentado a dizer que seja o próprio Deus a não aceitar que
entre os homens haja uma harmonia total”. O próprio Jesus referiu-se à diversidade
de vias para alcançar o Divino quando disse: “Na casa do meu Pai, há muitas
moradas”.
Infelizmente, Cirilo, que se considerava a
si próprio como paladino do cristianismo, pareceu esquecer-se igualmente de outras
palavras sábias de Jesus:
“Vós sois a luz do
mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende a candeia para a colocar debaixo do alqueire,
mas sim em cima do candelabro, e assim alumia a todos os que estão em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que,
vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu”.
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