sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Prisciliano: um reformador do Cristianismo na Antiguidade Tardia


Prisciliano é uma das personalidades mais significativas da história religiosa da Península Ibérica,.Viveu na época denominada pela Antiguidade Tardia, assim designada por historiadores e outros eruditos para descrever o intervalo entre a Antiguidade clássica greco-romana e a Idade Média, na Europa e no mundo mediterrânico, geralmente entre o declínio do Império Romano cerca do ano 300 e o fim do Imperio Romano do Ocidente em 476, que marcou a consolidação dos reinos germânicos na Europa e do império Romano do Oriente, também designado como Império Bizantino. 
De acordo as fontes históricas existentes, nasceu na aldeia de Iria Flavia, que se encontra hoje ligada à vila de Padrón, numa Galiza que, na altura, pertencia à província romana da Galécia. cujo território incorporava o Norte de Portugal e partes atuais de Leão e Astúrias.
Liderou uma corrente do Cristianismo, com características reformadoras, ascéticas e inclusivamente gnósticas, tendo sido o primeiro heterodoxo a ser condenado à morte pela hierarquia eclesiástica, em articulação com o poder político então vigente.
Autores diversos como Agostinho da Silva, Jaime de Cortesão, Miguel de Unamuno e Teixeira de Pascoaes atribuem ao priscilianismo uma relevância fundamental na espiritualidade característica dos povos ibéricos.
De acordo com alguns autores, é Prisciliano quem se encontra sepultado em Compostela, e não São Tiago, que nunca saiu da Palestina, de acordo com as Escrituras.
Ele considerava-se como um asceta que renunciara às tentações mundanas e como tal, buscava a proximidade com o Divino através de uma ascese rigorosa. A principal atividade utlizada nesta ascese era a leitura e a interpretação das Escrituras, incluindo os documentos apócrifos, que ele considerava válidos, com o fundamento de que eram igualmente resultado de uma revelação divina. Na sua perspetiva, o cânone do Novo Testamento tinha sido uma decisão humana.
Defendia que a alma se encontrava aprisionada num cárcere material, o corpo, e que era imperiosa promover a sua libertação, de modo que pudesse regressar ao plano divino.
Enfatizando a unidade absoluta de Deus, mostrava reservas em relação à doutrina da Trindade, proclamada pelo Concílio de Niceia, em 325, que vê Deus uma unidade composta pelo Pai, Filho e Espírito Santo.
Prisciliano contestava o modelo hierarquizado de Igreja já vigente na sua época, que tinha o apoio ativo do poder político imperial, que pretendia deste modo instrumentalizar o Cristianismo. Com efeito, defendia um modelo de Igreja próximo daquele que tinha promovido pelos primeiros discípulos de Jesus, baseado na prática da ascese e na leitura e interpretação dos textos sagrados, tanto dos canónicos como dos apócrifos. Defendia a igualdade entre homens e mulheres. Questionava a exclusividade dos bispos e dos demais ministros ordenados na transmissão dos ensinamentos espirituais, considerando que Deus pode escolher crentes, sejam ordenados ou não, e conferir-lhes a capacidade de pregarem e interpretarem as Escrituras. Neste sentido, o Espírito de Deus pode conceder a qualquer crente a luz que o permite compreender a mensagem das Escrituras. Na interpretação das Escrituras, Prisciliano enfatizava a dimensão simbólica em detrimento do literalismo.
Proclamando uma doutrina que visava o conhecimento de Deus através do autoconhecimento de cada um, as propostas de Prisciliano defendiam igualmente a pobreza voluntária, a abstinência do álcool e da carne, o exercício da esmola, a abolição da escravatura e a igualdade entre homens e mulheres. Recomendando o celibato, Prisciliano não proibia, no entanto, o casamento de clérigos e monges, reconhecendo que a sexualidade consciente também era um valor que podia ser sacralizado. É nessa linha de pensamento que Prisciliano, escandalizando os seus contemporâneos, abre as portas dos templos às mulheres, como participantes integrais e ativas na liturgia e ousa afirmar que as almas humanas são, em essência, da mesma substância que Deus e podem transmigrar-se.
As reuniões das comunidades influenciadas pela mensagem de Prisciliano eram abertas à participação das pessoas que o desejassem, independentemente do sexo ou da condição social.
Essas reuniões eram frequentemente noturnas, tendo lugar nas montanhas, recordando os cultos estelares e de natureza, de origem celta. Nessas reuniões, a dança desempenhava um papel ritual importante.
Para além da Península Ibérica, a sua pregação teve um forte impacto no sul da atual França, lançando o germe de futuros movimentos heterodoxos, nomeadamente o Catarismo.
As deias de Prisciliano tiveram um forte influências em todos os estratos da sociedade, desde escravos à aristocracia, o que contribuiu para desencadear a reação dos setores mais conservadores da ortodoxia, que não hesitarem em aliar-se ao poder político, para promover a sua condenação à morte, um procedente de mau agoiro que iria marcar toda a história do Cristianismo e estabelecia os fundamentos daquilo que, séculos mais tarde, iria ser a Inquisição.
Como homem livre e cristão, Prisciliano valorizava acima de tudo o autoconhecimento como via privilegiada do encontro da pessoa humana com o Divino, apelando à experiência individual, que não podia ser substituída por nenhuma escritura, por mais sagrada que fosse, pois continuava a ser "letra" e o objetivo era a "consciência"; ou seja, seria essencial distinguir entre a letra que mata e o espírito que vivifica e renova.
Prisciliano foi o auto de diversas obras teológicas, mais concretamente as seguintes:
- Livro apologético (Liber Apologeticus), defesa do Sínodo de Saragoza;
- Livro ao Bispo Dámaso (liber ad Damasum Episcopum), carta ao Papa;
- Sobre a fé e os apócrifos (De fide et apocryphis);
- Tratado da páscoa (Tractatus paschalis);
- Tratado do êxodo (tractatus Exodi);
- Tratado dos primeiros salmos ( Tractatus Psalmi tertil);
- Tratado para o povo I – II (Tractatus ad populum – I – II);
- Bênção ao povo (Benedictio super populum).
Prisciliano compôs igualmente hinos para ajudar na difusão da sua mensagem. Um dos hinos mais belos cuja autoria é-lhe atribuída é o célebre "Hino a Jesus Cristo", que contém um apelo aos crentes para que não se fixassem nas palavras, mas que desenvolvessem a sua intuição espiritual.
“Quero desamarrar e quero ser desamarrado
Quero salvar e quero ser salvo
Quero ser engendrado
Quero cantar, cantai todos
Quero chorar, batei nos vossos peitos
Quero enfeitar e quero ser enfreitado
Sou lâmpada para ti, que me vês
Sou porta para ti, que chamas a ela
Tu vês o que faço. Não o menciones
A palavra enganou a todos, mas eu não fui totalmente enganado.”

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