Um dia, perguntaram a Albert Einstein pedindo que ele respondesse
a uma simples pergunta: “O senhor acredita em Deus?” A resposta foi: “Acredito
no Deus de Espinosa, que se revela na harmonia ordeira daquilo que existe, e
não num Deus que se interesse pelo destino e pelos atos dos seres humanos”.
Noutra ocasião, Einstein afirmou: “Não sou ateu, e não creio que
possa me chamar panteísta. Estamos na situação de uma criancinha que entra em
uma imensa biblioteca, repleta de livros em muitas línguas. A criança sabe que
alguém deve ter escrito aqueles livros, mas não sabe como. Não compreende as
línguas em que foram escritos. Tem uma pálida suspeita de que a disposição dos
livros obedece a uma ordem misteriosa, mas não sabe qual ela é. Essa, ao que me
parece, é a atitude até mesmo do mais inteligente dos seres humanos diante de
Deus. Vemos o Universo, maravilhosamente disposto e obedecendo a certas leis,
mas temos apenas uma pálida compreensão delas. A nossa mente limitada capta a
força misteriosa que move as constelações. Sou fascinado pelo panteísmo de
Espinosa, mas admiro ainda mais a sua contribuição para o pensamento moderno,
por ele ter sido o primeiro filósofo a lidar com a alma e o corpo como uma
coisa só, e não como duas coisas separadas”.
A conceção do Divino segundo Espinosa assume uma especial
relevância para a nossa contemporaneidade. Em
última análise, pode se dizer que é uma conceção e um ponto de vista que se
aproxima bastante de muitas posições religiosas ou espiritualistas dos nossos
tempos.
Breve nota biográfica
Baruch de Espinosa nasceu em 24 de novembro de 1632, em
Amesterdão, filho de pais judeus, oriundos de Espanha, que se mudaram para
Portugal e daí para a Holanda, por causa das perseguições religiosas. Educado
na comunidade judaica de Amesterdão, começou por receber os ensinamentos
tradicionais do judaísmo. Desde muito jovem, foi um estudante notável, que deu
uma grande preferência à filosofia e à teologia. A sua crítica em relação ao
judaísmo ortodoxo levou a um grave conflito com a sua comunidade religiosa de
origem. Em 1656 foi expulso da sinagoga de Amesterdão, acusado de blasfémia. O
ano de 1656 marcou o início de uma prolongada aventura solitária para Espinosa.
Teve de abandonar Amesterdão para sempre, já que todos os judeus ficaram proibidos
de lhe dirigir a palavra, incluindo os seus familiares mais próximos. Após a
sua condenação, viveu em várias cidades holandesas, dedicando-se ao ofício de
polidor de lentes. Apesar de Espinosa ter levado uma vida relativamente
solitária, a verdade é que se correspondeu com muitos intelectuais da sua
época. Quando a sua fama de grande filósofo ecoava por toda a Europa, teve
oportunidade de recusar o convite para lecionar Filosofia na Universidade alemã
de Heidelberg, com o argumento de não estar interessado em trocar a sua
liberdade e independência de espírito pelas limitações impostas à vida de
professor universitário. Quando Espinosa morreu, em 21 de fevereiro de 1677,
tinha apenas 44 anos de idade. Deixou uma das mais importantes obras
filosóficas de todos os tempos. As suas obras principais foram: Ética Exposta
ao Modo Geométrico; Tratado Teológico-Político; Tratado da Reforma do
Entendimento; Epistolário.
A Substância Divina
Espinosa apresenta a seguinte definição de Deus: “Entendo por Deus
um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos
atributos, dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita”.
Substância, conforme Espinosa, é aquilo que existe em si mesmo e é
concebido por si mesmo, ou seja, algo inteiramente independente de qualquer
outra coisa, tanto no que se refere à sua existência quanto à sua essência.
Deus é uma substância. Logo, Deus é causa de si, eterno e
infinito. Mas não só, falta um dado capital: Deus não é apenas uma substância,
Deus é a Substância. “Afora Deus, afirma Espinosa, nenhuma substância pode ser
dada nem concebida.”
Portanto, Deus define-se como a Substância única, infinita e causa
de si, fora do qual nada pode existir nem subsistir. Deus, Ser em si e por si,
é imanente a toda a realidade.
A conceção de Espinosa sobre Deus coloca em causa todas as
religiões instituídas. Com efeito, a ideia de um Deus pessoal, criador e
legislador supremo do Universo, dotado de atributos morais e transcendente ao
Universo, não passa de uma ilusão antropomórfica, segundo Espinosa.
Espinosa nega a Criação e substitui-a pela manifestação da
Substância Divina que se exprime em modos, nos quais não existe subordinação a
um desígnio, sendo possível explicar o Universo sem recurso a causas finais.
Como nenhuma existência em si pode afirmar-se fora de Deus, tudo o
que existe na Natureza surge como modificação da Substância Divina.
Os atributos e os
modos da Substância Divina
A Substância Divina engloba uma infinidade de atributos, também
eles, que manifestam a essência do Divino. De entre estes atributos, somente
dois são acessíveis ao conhecimento humano: o Pensamento e a Extensão. Enquanto
o Atributo-Pensamento manifesta Deus idealmente, o Atributo-Extensão mostra
Deus materialmente.
Espinosa distingue os atributos divinos dos modos divinos; aos
atributos da o nome de Natureza Naturante e aos modos de Natureza Naturada,
onde, mesmo que todas as coisas existam em Deus e exista em todas as coisas,
não significa que haja uma interligação entre a essência de Deus e a essência
dos modos. A essência de Deus é uma potência de causa inesgotável. Dá o nome de
Natureza Naturante à substância e seus atributos enquanto atividade infinita
que produz a totalidade do real e dá o nome de Natureza Naturada à totalidade
dos modos produzidos pelos atributos. Desta forma, Deus não é uma causa que se
separa dos efeitos após tê-los produzido, mas é causa imanente e eficiente de
seus modos e se expressa por eles e eles a expressam.
Portanto, a natureza naturante é Deus como princípio de todas as
coisas, enquanto a natureza naturada é o conjunto das coisas determinadas e
finitas que emanam do poder infinito de Deus. A substância é a natureza ativa,
ou Deus, e o modo é a natureza passiva, a matéria, ou o Universo. É por isso
que Espinosa afirma que as leis universais da natureza e os eternos decretos de
Deus são uma e a mesma coisa.
A ética
Espinosa vai tirar da sua noção de substância uma teoria da
liberdade humana que se afasta do livre arbítrio: a vontade de Deus e as leis
da natureza, sendo uma e a mesma realidade, diversamente expressa, segue-se que
todos os fenómenos são o efeito mecânico de leis invariáveis. A visão de
Espinosa leva-o afirmar que a vontade de Deus é a soma de todas as causas e
leis e que o intelecto de Deus é a soma de todos os pensamentos. É por isso que
afirma que o Espírito de Deus é a mentalidade difusa no espaço e no tempo, a
consciência difusa que anima o Universo.
O sistema ético
preconizado por Espinosa pretende ajudar os seres humanos a dizer sim à vida e
também à morte...Com a ampliação das suas perspetivas, esta filosofia pretende
acalmar os nossos atormentados egos e reconciliar com as nossas limitações.
Pode levar à resignação ou à passividade; mas é também a base indispensável de
toda a sabedoria e força.
Espinosa encara a noção da imortalidade de uma forma muito
diferente do conceito criado pelas grandes religiões monoteístas:
"enquanto partes do todo somos imortais. O espírito humano não pode ser
absolutamente destruído com o corpo; parte dele permanece eterna, a parte que
concebe as coisas sub specie
aeternitatis; quanto mais concebemos desse modo as coisas, mais eterno é o
nosso pensamento". Mas distingue eternidade de perpetuidade. A eternidade
não pode confundir-se com duração. Tão-pouco, a memória individual pode
sobreviver à morte do corpo, porque o espírito só pode lembrar-se quando está
no corpo. Também não acredita em recompensas após a morte. Aquele que, em vida,
serve a Deus, obtém a recompensa enquanto vive, na serenidade e tranquilidade
que andam associadas à felicidade, pois a bem-aventurança não é a recompensa da
virtude mas a virtude em si. A imortalidade do pensamento justifica-se porque a
verdade é uma criação permanente, constituindo uma aquisição eterna do ser
humano.
A crítica espinosista
à religião
Na sua obra, Espinosa aborda de forma crítica o estatuto da
religião. Ao submeter os textos bíblicos e os textos sagrados em geral a uma
crítica histórica e filológica, Espinosa pretende demonstrar que a Bíblia pode
e deve ser estudada como qualquer obra antiga, lançando os fundamentos da
exegese bíblica moderna. Na sua perspetiva, os autores bíblicos, longe de
utilizarem a linguagem da razão, utilizam a da imaginação e da sensibilidade,
de modo a incentivar a veneração dos seres humanos em relação a Deus e aos seus
mandamentos.
Espinosa critica as religiões instituídas porque estão alimentadas
pelo medo e pela supertição, preconizando uma interpretação racional dos textos
sagrados. A diferença entre filosofia e religião é que a primeira busca a
verdade e a sugunda precisa da obediência para ser realizada.
As críticas que Espinosa faz às religiões instituídas, nomeadamente ao aparato de crenças,
cultos e práticas que elas
englobam, não põem em causa a existência
a relevância de Deus. Um Deus que os seus contemporâneos
têm dificuldade em reconhecer como tal.
Contrariamente aos seus contemporâneos que valorizam o antropocentrismo colocando o ser
humano como senhor e dono da
terra, Espinosa coloca em primeiro
lugar o Todo (Deus, Natureza, Substância) e desafia-nos
a conhecer a totalidade, descobrindo nela o
lugar que nos é devido. Se Deus é identificado com a Natureza nem por isso devemos
abdicar da reverência, respeito e beatitude que habitualmente reconhecemos à divindade.
De acordo com
Espinosa, a via do conhecimento, o caminho
mais elevado da realização humana, procura encontrar Deus nos fenómenos naturais que são a
sua expressão mais clara. A
filosofia e a ciência (que no século XVII ainda se confundem) ajudam-nos a
aceder ao conhecimento de Deus, que se manifesta na ordem e na conexão dos
fenómenos naturais.
É este género de conhecimento que permite nos integrar na
plenitude divina, participando do amor com que Deus se ama a si mesmo e nos
ama.
Contata-se que que o conceito de Deus Natureza é complementado com
o de Deus Amor de cuja gloria participamos.
Jesus como modelo
ético universal
Se a forma como Espinosa pensou Deus foi polémica, a sua
cristología não foi igualmente consensual.
Espinosa era um conhecedor profundo da Bíblia, podendo ser
considerado um dos fundadores da exegese bíblica, na medida em que fez uma
análise histórica, filosófica e filológica das Escrituras.
Espinosa enalteceu a figura de Jesus e designou-o como “a boca de
Deus”, considerando-o o único homem a quem Deus falou diretamente. Tal facto
elevou-o acima dos profetas, incluindo Moisés, conferindo-lhe um estatuto
singular.
Com efeito, Espinosa considera que os demais profetas receberam a
revelação através da sensibilidade e da imaginação. Pelo contrário, Jesus teve
conhecimento dos desígnios de Deus imediatamente, de modo inteiramente espiritual.
Contudo, Espinosa
considera Jesus exclusivamente como ser humano, negando-se a aceitar a sua
divindade.
Ao abordar a figura de Jesus, Espinosa tem duas finalidades. Por
um lado, contribuir para a sua desmitologização, tratando-o como um ser humano
e não como Deus. Por outro lado, a sua vida e atuação devem ser entendidas como
um modelo ético a seguir por todos os seres humanos.
A sua conceção cristológica aceita a história. De acordo com
Espinosa, Jesus é uma personagem cuja historicidade não levanta dúvidas,
considerando-o como judeu, que revolucionou a religião na qual foi educado,
transformando as leis particulares da Torá numa ética universal. Ao valorizar a
sua atuação mediadora e o seu papel como exemplo para a Humanidade no seu todo,
Jesus é considerado como o caminho da salvação.
Espinosa preconiza que a salvação pode ser obtida mediante o
cumprimento de determinadas regras morais, que estão apresentadas nas
Escrituras. De acordo com a sua perspetiva, o homem comum move-se
essencialmente por paixões, que geram dissensões e conflitos, daí resultando a
obediência às leis da sociedade humana e às regras morais. Neste contexto, o
exemplo de Jesus é fundamental, pois quem seguir os seus ensinamentos salva-se.
Espinosa reconhece na
mensagem de Jesus uma ética que proporciona estabilidade e harmonia aos seres
humanos.
Para Espinosa, Jesus
conseguiu conciliar uma dimensão filosófica, dificilmente compreensível pelos
seus contemporâneos, e um pensamento ético expresso em ternos éticos e
aceitáveis pelo senso comum, sem nunca denunciar as verdades fundamentais.
Segundo Espinosa, ele foi a manifestação suprema, mas humana, da Sabedoria
Divina. Foi o homem sábio, que mais do que qualquer outro, que se identificou
com o Espírito de Deus. Por isso, deve ser considerado como modelo para a
Humanidade no seu todo, não perdendo a sua condição humana.
Apesar de utilizar a
expressão “Filho de Deus”, Espinosa atribui-lhe um significado diferente do
usual, identificando-o com a Sabedoria Divina que se manifesta em todas as
coisas.
Recusa o dogma da
Encarnação, considerando-o incompreensível. A Ressurreição é analisada por
Espinosa com maior cautela, tendo em conta que as aparições de Jesus após a sua
morte foram presenciadas fora do círculo dos seus discípulos. Espinosa não
duvida da boa-fé dos discípulos nem os acusa de embuste.
Na sua perspetiva, os acontecimentos pós-pascais, nomeadamente a
Ressurreição e a Ascensão, foram manifestações da revelação divina, adaptadas a
mentes humanas muito presas a explicações corporais.
Assim, defende que a Ressurreição deu-se num plano estritamente
espiritual e foi revelada através dos meios ao alcance da compreensão humana
dos discípulos.
Na sua reflexão sobre
o cristianismo, Espinosa entende que a maioria das suas doutrinas é supérfluas
e circunscreve-se ao que entende como essencial: que Deus se mantém em nós e
nós nos mantemos em Deus.
Jesus é apresentado
como um modelo de justiça e de caridade, chegando a afirmar: “onde as
encontramos (a justiça e a caridade), está realmente Cristo; onde faltam,
Cristo está ausente”.
Embora não
reconhecendo a divindade de Jesus, Espinosa considera Jesus como um modelo
ético exemplar e a fidelidade á sua mensagem é considerada como um critério
para uma vida eticamente digna, à qual todos os seres humanos devem aspirar.
Conclusão
Do que foi atrás mencionado pode concluir-se que Espinosa atribui
a Deus um papel fundamental, mas que o considera de um modo muito peculiar.
Trata-se de um Deus que se
manifesta na ordem e na conexão dos fenómenos naturais, desde a mais ínfima
partícula ao Universo no seu todo.
Um dia, Espinosa escreveu um poema sobre Deus que acaba da
seguinte forma:
“Não me procures
fora!
Não me acharás.
Procura-me dentro… aí é que estou, batendo em ti.”
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